Refleti um pouco mais sobre a questão e cheguei a uma conclusão rápida. Talvez rápida demais, não deu tempo de lembrar todos os livros que já li e nem mesmo de todos os que mais gostei. Mas enfim, a resposta envolve muito mais do que o livro, mas principalmente o que o autor vivenciou para desenvolver a narrativa: Estação Carandiru, de Dráuzio Varella.
Quando comecei a ler Estação Carandiru eu estava 100% imersa no universo materno. Minha primeira filha tinha um ano e estava dando os primeiros passos. Passei aquele ano sem tempo para nada. Entre tantas coisas que escolhi abrir mão por conta daquele momento, uma das que mais me fazia falta era a leitura. Havia um ano que eu não folheava nem a revista Veja.
Quando enfim ousei reatar o antigo relacionamento sério com os livros, o eleito foi, nada mais nada menos que Estação Carandiru. Quando a gente ama, não importa o tempo que se esteve separado, é só chegar perto que o coração acelera e a paixão pega fogo de novo. E foi assim que aconteceu entre eu e meu novo livro.
Aquele ano sem ler foi emblemático. Minha sorte é que foi uma escolha. Ser mãe em tempo integral e dedicar tudo de mim à causa da maternidade sempre foi o maior sonho da minha vida. E chegada a hora, arregacei as mangas e abracei a oportunidade tão aguardada.
Ficar sem a companhia dos livros, sem o prazer da leitura só foi possível porque eu contava com uma companhia ainda mais encantadora, deslumbrante e apaixonada. Minha filha preenchia muito mais do que meu tempo, ela completava a minha vida e me dava em troca o melhor de todas as sensações: a do amor materno. E assim tem sido até hoje.
Retomar a vida de leitora foi apenas mais um dos inúmeros desafios da nova função como mãe. Não por acaso, o livro escolhido era completamente sedutor, o que me permitiu, mesmo sem tempo, teimar e concluir a leitura em poucos dias.
Eu lia o tempo todo, em pequenos intervalos. Às vezes lia uma frase, ou um parágrafo apenas. Quando muito, conseguia ler uma página. Parava toda hora para seguir os passinhos dela, não deixa-la cair. Dar banho, comida, fazer dormir, trocar fralda, passear de carrinho, levar para tomar vacina, ir à pediatra. Era uma rotina animada e de agenda cheia. 16 horas de trabalho ininterrupto a cada dia.
Mas Dráuzio Varella e seu universo da penitenciária me encandearam de tal maneira que eu pensava na trama 24 horas. Quando não estava lendo e estava perto do livro, a ansiedade era menor, porque eu sabia que a qualquer momento, em qualquer intervalo do ofício materno poderia abrir as páginas e sorver algumas letrinhas.
Quando eu saía de casa, o desespero e a saudade eram imensa. Eu estava enfeitiçada pelo que se passava entre os presos do Carandiru. A sensação de cumplicidade com a história era tanta que parecia que tudo acontecia em tempo real e eu estava perdendo os capítulos e os acontecimentos.
Eu ficava imaginando o que estaria acontecendo naquela hora no Carandiru… Era uma ideia fixa, um pensamento recorrente que não me abandonava.
Passados 16 anos eu estou aqui escrevendo sobre o Dia Nacional do Livro e escolhi esta obra emblemática para representar a data.
Como disse no início, escolher um único livro que eu gostaria de ter escrito é missão praticamente impossível.
A escolha que faço aqui diz muito mais respeito à minha vontade de ter vivido o que Dráuzio Varella viveu. Ali, naquele papel de homem corajoso e médico humanista – figura quase em extinção.
No Dia Nacional do livro eu lembro uma obra que gostaria de ter escrito. Não só pela qualidade da narrativa, mas principalmente pela experiência que o autor vivenciou e pela capacidade que ele teve de mostrar, de transmitir o lado humano, a capacidade humanística de fazer com que eu olhasse cada preso do Carandiru como a mãe deles olha.
Que eu pudesse perceber o que uma mãe percebe. Mesmo com uma pena, há esperança de viver, de mudar, de melhorar, de perdoar e ser perdoado. A esperança de começar tudo de novo e fazer diferente, fazer melhor. Se errar é humano, perdoar é amor e esperança é vida, futuro.
Depois que eu li o livro eu assisti o filme. Normalmente eu não costumo assistir filmes baseados em livros que eu li ou pretendo ler, justamente para não atrapalhar as imagens fotográficas que eu criou na minha imaginação. Mas pela sensibilidade de Héctor Babenco criei coragem e por incrível que pareça eu gostei muito.
A cena de sangue lavando as escadas como se fosse uma cachoeira de água vermelha foi perfeita, sozinha ela resumiu fidedignamente todo aquele drama. No livro também. Terror, pânico, crueldade, injustiça, truculência, autoritarismo, impotência, preconceito e tudo que há de pior no mundo resumido em uma única cena inesquecível.
O mocinho é capaz de cometer atrocidades com os mesmo requintes de crueldade dos bandidos. Entre o crime de colarinho branco e a malandragem da periferia a diferença pode estar somente na condição financeira e nos privilégios.
Faço aqui uma comparação com outra obra, Droga Disfarçada de Estudande – de Layla e Arlem Mafra – quando ele diz – não lembro bem se no livro ou em uma palestra que assisti – sua maior vergonha no presídio era ver que praticamente todos que estavam ali não tiveram boas oportunidades na vida, como ele teve. Os outros detentos podiam se consolar através do fatalismo, do homem como produto do meio. Mas ele tinha plena consciência de que tinha tido dos as chances mas escolheu o caminho errado.
Dráuzio Varella trouxe o leitor para os escaninhos da alma daqueles pobres diabos. Mostrou como até a pior das criaturas tem a sementinha do amor plantada no coração. Apresentou a grandeza que a figura da mãe e dos filhos representa para muitos criminosos.
Desnudou o lado humano dos bandidos, descortinou a linha tênue entre o bem e o mal. Trouxe perto de nós a relação dos infratores com a religião, o temor a Deus e a fé.
Eu já li outros livros fantásticos sobre o mundo do crime que também revelavam a faceta humana do mundo do crime, mas o que tratou o assunto com mais sensibilidade e cativou a minha admiração realmente foi Estação Carandiru.