A poesia está em todos os lugares, no poema que se lê, na voz que se ouve, na música que se canta. Encontra-se no farfalhar das folhas, na gritaria das crianças durante o recreio e no chorinho do bebê. Traduz-se em diversas formas de encantamento e inspiração que nos remetem a outros tempos, outros lugares. O que se vivencia hoje, mais tarde voltará à mente em doces e poéticas lembranças.
O cheiro e o som são poesia em construção, despertam nossos sentimentos mais remotos e aguçam nossa criatividade para buscar, sondar e percorrer, até encontrar. Encontrar um vocábulo que preencha o que pensamos, uma fotografia que amenize a saudade, um abraço que preencha a solidão.
Ao ouvir os poemas de Gullar em CD – na voz dele – deparei com tudo isso. Melodia recitada, expressão poética na voz do criador, sintonia entre autor e leitora ouvinte, descobertas e recordações despertadas lentamente, com todo o deslumbramento que o poeta provoca.
[…]
Enquanto
minha mãe costura e o arroz
no fogo
rescende a família.
[…]
De repente está você, de volta à velha casa da infância, naquela rua quieta, ouvindo os sons de inocência e tranquilidade. A poesia nos leva, transporta para uma viagem sem pedir licença, e ao mesmo tempo sem forçar. O cheiro do arroz ressurge e rescende a afeição pela família, aflora o amor, rememora um tempo em que o mundo inteiro parecia estar aos seus pés.
[…]
Não é voz de ninguém
esse barulho
que se mistura ao som da nossa fala
entra ano sai ano
se mistura
aos sons da nossa casa
da água na torneira
da vassoura na sala
Não é voz
de mangueira?
de oitizeiro
de sapotizeira?
[…]
A casa ressurge, está viva dentro de você! O cotidiano volta e posta-se à sua frente, imponente, com ares da mais verdadeira realidade. E quem poderá dizer o contrário? Nesse momento você está lá, ouvindo a água na torneira, escutando a vassoura na sala. E lá fora, ah, que delícia o ventar das árvores! E você se muda. Partiu para aquele mundo, seu primeiro ninho, sua referência de cuidado, segurança e proteção. Que super poderes tem a poesia, para trazer de tão longe tudo isso de volta? Quanto prazer despertado pelo simples estímulo das palavras mágicas do poeta.
[…]
Todo o vento
ventado aqueles anos
na Quinta dos Medeiros
se teria esvaído sem lembrança
não fora haver
naquela casa de esquina
para ouvi-lo
ao menos um menino.
[…]
Um menino que está vivo. Pulsando, tomado de frescor e energia, atento, a observar pelas frestas da memória, uma vida inteira que não se foi, mas permanece intacta. Está impregnada nas suas entranhas, eternizada em seu coração, viva em suas lembranças e aflorada pela emoção que a poesia desperta. Obrigada Gullar, obrigada vento, cheiro, memória! Obrigada, poeta, por imortalizar nossas recordações e perpetuar nossas vidas – a sua e de seus leitores – para além da eternidade.
Ouça aqui o poema “A Ventania”.