Ana Beatriz Nogueira construiu um pequeno palco em seu apartamento, na Gávea. É lá que transcorrem as leituras da peça “Mordidas”, versão de Miguel Falabella de um texto do argentino Gonzalo Demaría. A partir de abril, a atriz dividirá a cena com Zélia Duncan, Regina Braga e Luciana Braga. Essa atividade intensa quase diária só é interrompida pela agenda de gravações da próxima temporada de “Malhação”. É uma participação, porque a partir de junho, a atriz começará a preparação para a novela das 21h de Aguinaldo Silva (“com quem sempre sonhei trabalhar”).
Tanta energia é extraída de uma adoração profunda pela profissão que exerce há 32 anos. Com motivos: ela lhe trouxe grandes alegrias desde cedo, uma delas, o Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim, pelo filme “Vera”, conquistado aos 20 anos. Mas a disposição não vem apenas disso: o amor pela arte se soma a uma disciplina férrea. Ela é imprescindível para manter sob controle a esclerose múltipla em sua forma surto-remissão, diagnosticada em 2009, quando Ana Beatriz fazia “Caminho das Índias”.
“A arte me salva todos os dias. Já me salvava antes, agora, mais ainda”, afirma. O primeiro surto aconteceu em janeiro de 2009. Ela estava em casa, vendo um filme na madrugada, quando sentiu a visão duplicar.
“Achei que a legenda da televisão estava ruim. Mas, no dia seguinte, não tinha melhorado e procurei o médico. Ele disse que isso se chama diplopia e poderia ter inúmeras causas. Concluiu que era o efeito colateral de um remédio para dormir que eu estava tomando. Me tranquilizou e garantiu que passaria com a suspensão do medicamento”.
Dias depois, na festa do lançamento da novela de Gloria Perez no Parque Lage, Ana Beatriz precisou da ajuda de Tony Ramos e da mulher dele, Lidiane, para subir as escadas e chegar ao salão do palacete: — Lá dentro, pedi à Silvinha (Buarque) para me levar até um canto. Acabei num grupinho em que estava Leda Nagle acompanhada de dois oftalmologistas, olha a ironia. Conversamos o tempo inteiro. Passados uns 15 dias, minha visão acabou voltando ao normal e atribuí o episódio às razões que o médico tinha apontado.
Só que, mais adiante, quando “Caminho das Índias” já estava no meio, veio o segundo surto. Ela se recorda de uma cena com Antonio Calloni, seu marido na novela. Ela teria que atravessar o estúdio e levar uma garrafa de champanhe até Vera Fischer, que aguardava parada do lado oposto. “Eu estava vendo duplo e embaçado. Pedi ao Calloni para me dizer de que lado estava a Vera: eu via duas Veras. Ele sinalizou, tirei uma reta e fui”.
De novo, procurou ajuda especializada. Fez uma ressonância magnética e um exame de líquor, um procedimento recomendado para o diagnóstico de doenças neurológicas. Passou três dias no hospital em pulsoterapia (recebendo altas doses de cortisona por via venosa). O exame deu positivo para esclerose múltipla, mas o médico insistiu que era “um falso positivo”. Depois, passou por “300 exames” de vista e nada foi concluído. Dias mais tarde, os sintomas sumiram. Só em novembro, quando veio o terceiro surto, atendida por outra neurologista, soube de fato a causa daquilo tudo.
“Todos os três (e únicos) surtos que tive foram visuais. O último se mostrou o mais angustiante: eu realmente não enxergava nada. Mas, àquela altura, ainda bem, tinha encontrado uma médica que fez o diagnóstico definitivo”, diz.De início, veio o choque: — Achei que era o fim. Como atriz, meu corpo é meu instrumento de trabalho, meu tudo, dependo da minha visão, da audição, das funções cognitivas. O trabalho é minha festa, minha fonte de renda, minha alegria, minha beleza. Partimos para o tratamento. Fiquei dois meses de cama, me senti debilitada. Sabe quando “somem os tapetes vermelhos”, que são aqueles sonhos bonitos que você tem quando está quase adormecendo? Foi assim que aconteceu.O prognóstico, representou, por outro lado, um alívio: — A médica também me disse: ‘Você tem esclerose múltipla, uma doença autoimune que não tem cura e pode ser incapacitante. Mas a sua é na forma branda, o prognóstico é muito bom e você pode controlar isso e morrer de tijolada!’.
Por tudo isso, decidiu: “vou sair dessa cama!”. A reação veio em forma de um monólogo, “Tudo o que eu queria te dizer”, um texto de Martha Medeiros em que foi dirigida por Victor Garcia Peralta (com quem está reeditando a parceria agora, em “Mordidas”). — Quando eu vi, já estava fazendo. De lá para cá, nunca trabalhei tanto na vida.
Amigos próximos — entre os quais, Patricia Pillar, Denise Bandeira, Zélia Duncan, Malu Mader e Luiz Henrique Nogueira — aprenderam a aplicar a injeção de imunomodulador de que ela precisa para nunca mais ter surtos (“A gente treinava dando agulhada em laranjas”, ri). A medicação e a obrigação de fazer ginástica (“detesto, mas me esforço”), o calor às vezes excessivo (“contorno usando uma pedrinha de gelo nos pulsos e no pescoço”) e a fadiga são as únicas alterações na rotina. No mais, ela é igual à de qualquer profissional no auge da carreira. A decisão de tornar pública sua condição é fruto de um processo. Durante anos, temeu o preconceito. Só o círculo restrito de amigos, o irmão Gustavo, uma tia, Helô, e Carlos Henrique Schroder (diretor geral da Globo) e Monica Albuquerque (responsável pelo Departamento de Desenvolvimento Artístico na emissora) sabiam e a apoiavam. Agora, com a doença sob controle, concluiu que poderia ajudar a “combater a ignorância, o maior perigo de todos”. Pretende abrir um espaço na internet para tratar do assunto (“não para dar conselhos que só um médico tem autoridade para dar. Será uma troca de experiências”). É algo que fez falta a ela enquanto manteve a doença em sigilo:
“O segredo é pesado. A gente vai digerindo, entendendo e resolvendo os fantasminhas. Minha decisão de falar foi motivada por amigos, por terapia e pelo desejo de tornar essa estrada mais fácil para quem tiver que passar por ela. Não estou doente, tenho uma doença. Gosto de ver a esclerose múltipla como uma característica. Muita gente tem medo de falar, com receio de virar “café com leite” na vida. Mas quem controla a vida?”, pergunta a atriz.
O que é?
Por Drauzio Varella
Esclerose múltipla é um distúrbio inflamatório crônico do sistema nervoso central, caracterizado por surtos recorrentes de atividade imunológica que agridem a camada de mielina que envolve os nervos (como a capa em volta da fiação elétrica de uma casa). A causa é desconhecida. Não é doença infecciosa nem contagiosa. Como em outras doenças autoimunes, há predomínio entre as mulheres. A proporção é de três para cada homem. Embora existam fatores genéticos envolvidos, a maioria dos pacientes não relata casos na família. Nada que o indivíduo possa ter feito ou deixado de fazer impede o aparecimento da doença. Os primeiros sintomas geralmente se instalam entre os 20 e os 40 anos. Os principais são:
1) Sensitivos: perda de sensibilidade em áreas do corpo, sensações de formigamento, picadas de agulha, dor, tontura, visão dupla ou embaçada e dor ao movimentar os olhos.
2) Motores: fraqueza muscular, dificuldade para andar, tremores, dificuldade ou premência para urinar ou evacuar, falta de coordenação motora e rigidez muscular.
3) Outros: sensibilidade ao calor, fadiga, alterações emocionais e cognitivas, depressão e sintomas sexuais.
O curso natural é caracterizado por períodos de relativa estabilidade durante meses ou anos, interrompidos por surtos de piora com dias ou semanas de duração, fases chamadas de ataque, exacerbação ou recaída.De acordo com elas, a evolução pode ser classificada como:1) Remissão e recaída: os ataques provocam sintomas que regridem parcialmente ou desaparecem. No intervalo, o quadro permanece estável.
2) Progressão secundária: depois de alguns anos de remissões/recaídas, o padrão de evolução se modifica para um agravamento progressivo, porém com menos recaídas.
3) Progressiva primária: Instalação gradual desde o início, sem ataques identificáveis.
4) Recaída progressiva: forma rara caracterizada por um curso progressivo inicial, seguido por ataques em fases mais tardias da evolução.
5) Fulminante: forma rara e grave, de progressão rápida.
Não há exames laboratoriais para diagnosticar a doença. Os especialistas costumam se basear nos critérios de McDonald, que levam em conta o número de ataques e o tempo de aparecimento e a localização espacial das lesões cerebrais, identificadas por ressonância magnética.
O tratamento requer intervenções múltiplas. Tem como objetivo tratar as recaídas, prevenir novos ataques e aliviar os sintomas que interferem com a qualidade de vida. Nos últimos anos, surgiram diversos medicamentos com atividade contra os fenômenos inflamatórios que agridem a camada de mielina, responsáveis pelas remissões e recaídas. Essas drogas têm custo alto, e estão associadas a efeitos colaterais indesejáveis que precisam ser avaliados caso a caso.