Povo Yanomami não pratica canibalismo: saiba como funciona o ritual fúnebre ‘Reahu’

Especialistas afirmam que atrelar canibalismo à cultura Yanomami é falta de conhecimento e expressa preconceito com os indígenas.

O ritual de morte praticado pelo povo indígena Yanomami gera muita curiosidade. Alguns questionam sobre a possibilidade da pratica de canibalismo, mas segundo antropólogos e indígenas isso não faz parte de nenhum ritual deles. De acordo com o pesquisador Rogerio Pateo, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do departamento de antropologia e arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), essa informação esboça preconceito até mesmo com os indígenas em geral. 

O pesquisador explicou que, quando ocorre uma morte, os indígenas Yanomami se envolvem num ritual, chamado de ‘Reahu’, que dura semanas. Este processo fúnebre envolve deixar o corpo na floresta, para que se decomponha. Depois, o funeral segue com a cremação dos ossos e, então, as cinzas são guardadas até serem enterradas, na despedida final.

“Após a morte, o defunto é colocado em uma espécie de cesta e pendurado em uma árvore em um local pouco frequentado da floresta. O corpo fica lá até a decomposição da carne, restando apenas o esqueleto. Ao final desse processo, os ossos são recolhidos e levados para a aldeia do indígena morto, onde são queimados em uma grande fogueira com a presença de pessoas de aldeias aliadas, que vem participar do ritual funerário. Ao final da cremação, as cinzas são guardadas em cabaças e são distribuídas entre esses aliados, que as levam para suas aldeias. A partir daí, cada um faz uma festa para chorar o morto e enterrar as cinzas em um novo ritual”, explica o antropólogo, que durante um ano desenvolveu pesquisa de campo entre os Yanomami de Sucururu.

O pesquisador esclareceu ainda que em situações muito pontuais, especialmente na Venezuela – onde também vivem grupos e subgrupos do povo Yanomami, “uma pequena quantidade dessas cinzas é misturada a um mingau de banana que é consumido por pessoas específicas”. 

Líder indígena segura cabaça com cinzas de uma Yanomami morta. Foto: Valéria Oliveira/g1 Roraima

Pesquisadora da cultura e do povo Yanomami desde 1968, a antropóloga e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB), Alcida Rita Ramos, reforçou que há pequenas variações regionais dos rituais de luto dentro da Terra Indígena. Um desses, pode ser a “pulverização das cinzas dos mortos a mingau de banana que são ingeridos pelos parentes mais próximos”.

Além disso, para melhor entendimento, Alcida comparou o ritual de morte dos indígenas à cerimônia feita na igreja Católica: “Assim como a hóstia cristã incorpora a memória do Cristo entre os vivos e os torna mais cristãos, também as cinzas do parente Yanomami transmitem a sua essência aos vivos e os tornam mais fortes. É a manifestação máxima de solidariedade humana, capaz de superar a própria morte quando une um morto aos seus parentes vivos. Ao mesmo tempo, a incorporação material do morto libera seus componentes imateriais para seguirem o seu próprio destino pós-morte, desprendendo-o definitivamente do mundo dos vivos”.

Assim, a antropóloga destaca que não existe prática de canibalismo no ritual de morte Yanomami, “tanto quanto engolir hóstia na comunhão católica pode ser chamado de canibalismo”. Para Rogerio Pateo, este pensamento, de sugerir que existe o canibalismo, “é um resquício de imagens preconceituosas que remontam à chegada dos europeus na América do Sul no século XVI”.

Imagem mostra como ficam corpos na floresta em parte do ritual fúnebre do povo Yanomami. Foto: Júnior Hekurari Yanomami/Arquivo pessoal

Nunca houve canibalismo

O líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, que também é presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), reforçou a explicação dos especialistas, pontuando que o ritual de morte entre os Yanomami segue um conjunto de cerimônias que podem durar até anos.

“O corpo fica 30 a 45 dias na floresta. Depois, queimamos e as cinzas colocamos no moraaxi. Quando se trata de uma pessoa importante na comunidade, um líder, as cinzas são dividas entre as outras comunidades. Depois, de dois a cinco anos, fazemos ritual fúnebre para enterrar a cinza dentro da comunidade com presença dos vários líderes das comunidades”, informa.

Moraaxi é uma espécie de urna funerária – podem ser em cestos de cipó ou cabaço, onde são colocadas as cinzas. Passados os anos, o ritual de morte se encerra com uma celebração típica em que as cinzas são enterradas.

“Depois de três dias [do último ato do ritual] enterramos essas cinzas para a pessoa descansar em paz, pois finalizou sua missão na terra, então tem que ter outra missão lá em cima. É nisso que acreditamos”, pontua Hekurari.

A Terra Yanomami é uma das regiões alvos de garimpeiros que exploram ilegalmente minérios, principalmente o ouro. A atividade clandestina destrói rios, floresta, e impacta na vida do povo Yanomami, que sofrem com doenças e conflitos armados dentro da reserva – a maior do país.

*Com informações da matéria escrita por Valéria Oliveira, do g1 Roraima


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