60 anos do golpe militar: Acre teve 1º governador deposto e resistência de seringueiros

José Augusto de Araújo, primeiro governador do Acre eleito democraticamente, teve de renunciar para evitar conflitos. Seringueiros foram oprimidos pelas políticas de ocupação da Amazônia.

Em março de 1964, o Acre era o mais novo estado do Brasil. Depois de mais de 50 anos de luta autonomista, o território foi alçado a categoria de unidade federativa em 1962. O primeiro governador democraticamente eleito, José Augusto de Araújo, havia assumido o cargo exatamente um ano antes, em março de 1963. O golpe militar, entretanto, enterrou todas as esperanças criadas para o desenvolvimento da região.

A renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, desencadeou uma série de fatos que culminaram em um golpe de estado em 31 de março de 1964. O sucessor, João Goulart, foi deposto pelos militares com apoio de setores da sociedade, que temiam que ele desse um golpe de esquerda, coisa que seus partidários negam até hoje. O ambiente político se radicalizou, porque Jango prometia fazer as chamadas reformas de base na “lei ou na marra”, com ajuda de sindicatos e de membros das Forças Armadas. Os militares prometiam entregar logo o poder aos civis, mas o país viveu uma ditadura que durou 21 anos, terminando em 1985 

ESPECIAL “60 ANOS DO GOLPE MILITAR

José Augusto de Araújo, primeiro governador eleito democraticamente, ficou apenas um ano no poder — Foto: Acervo histórico do Museu Universitário da Ufac

Acreano de Feijó, Araújo era um político até então desconhecido. Filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o mesmo do presidente João Goulart, Araújo havia vencido a eleição contra um oponente de peso. O senador José Guiomard Santos, autor do projeto de lei que criou o estado do Acre. Santos, um carioca que fez carreira política na região acabou preterido pelos acreanos.

O clima de celebração, contudo, não durou muito tempo. Com ideias consideradas revolucionárias para época e que estavam alinhadas com o que Goulart defendia para o Brasil, como a realização de uma reforma agrária, Araújo acabou despertando a ira de opositores e até mesmo de aliados.

“Era uma pessoa que lia muito e queria dar o melhor que pudesse para o estado dele”, disse, em 2014 a ex-primeira-dama Maria Lúcia de Araújo. 

Governador do Acre, José Augusto de Araújo e presidente João Goulart defendiam reforma agrária — Foto: Acervo histórico do Museu Universitário da Ufac

‘Subversivo’ e ‘comunista’ 

Com o estabelecimento da ditadura, os opositores de Araújo viram a chance perfeita para se livrar dele. O governador escolhido pelo povo passou a ser denunciado aos militares como ‘subversivo’ e ‘comunista’.

A situação ficou insustentável até que no dia 8 de maio de 1964, José Augusto foi forçado a renunciar pelo comandante da 4ª Companhia Militar, capitão Edgar Pedreira de Cerqueira Filho, durante o episódio que ficou conhecido como ‘Cerco ao Palácio’.

Comandados por Cerqueira, os militares cercaram o Palácio Rio Branco e exigiam que o governador renunciasse ou iriam invadir o local. Maria Lúcia conta que aliados do governador ainda tentaram convencê-lo a resistir. No entanto, temendo que houvesse derramamento de sangue, ele recuou.

“Naquele tempo tínhamos a guarda territorial, eram poucos homens e que não podiam nunca confrontar o pessoal do exército com metralhadoras, quando o estado não tinha nem arma para revidar. Aí, ele disse: ‘vai correr sangue, então para que lutar?’. Aí resolveu renunciar”, lembra a viúva. O governador, porém, assinou o documento apenas com suas iniciais, um forma de deixar claro que estava sendo obrigado a tomar aquela decisão. 

Carta de renúncia de José Augusto de Araújo foi assinada apenas com as iniciais — Foto: Acervo histórico do Museu Universitário da Ufac

 O golpe dentro do golpe

Em uma cerimônia rápida, os deputados estaduais do Acre deram logo posse a Cerqueira como novo governador do estado. A decisão, porém, teria sido tomada sem que o alto comando do Exército fosse consultado.

A viúva de Araújo diz que duas situações lhe chamaram atenção assim que ela e o marido tiveram que deixar o estado.

A primeira foi ao chegar em Porto Velho (RO). “Um coronel nos perguntou o que havia acontecido, porque a comunicação foi toda fechada. Ele vinha para assumir o governo, mas o Cerqueira se apressou e exigiu que os deputados votassem nele, segundo me contaram. Um golpe dentro do golpe”, comenta.

Já no Rio de Janeiro onde iriam viver nos anos seguintes, o casal foi recebido pelo general Homem de Carvalho e a pedido do general Humberto Castelo Branco, que ocupava a Presidência, teve que fazer um relatório sobre a situação ocorrida no Acre.

O historiador Gerson Albuquerque também crê que Cerqueira agiu de forma independente. “O golpe foi dele, na trama para tomar o poder, ele tem papel fundamental, mas ele não faz isso sozinho e sim porque tinha uma conjuntura favorável”, esclarece. 

Anos de exílio 

José Augusto e a esposa se refugiaram no Rio de Janeiro. No entanto, nem assim tiveram paz. O ex-governador teve que responder a diversos processos com acusações de corrupção, de conduta subversiva e comunismo. “Diziam que ele era comunista porque quis fazer reforma agrária”, lembra Maria Lúcia.

Em 1965, para responder a um desses processos teve que voltar o Acre, agora governado pelo capitão Cerqueira, e acabou ficando preso durante sete meses. Com a saúde fragilizada, por causa de problemas no coração, acabou cumprindo a pena no Hospital de Base de Rio Branco.

“O Hospital era uma coisa horrível, um hospital que era de indigência. Quando eu tinha que viajar, tinha que passar por cima dos cadáveres para poder chegar até a saída do hospital. Foi uma das piores fases da minha vida. O que passava na minha cabeça é que eu tinha que lutar para sair daquilo porque era uma injustiça, e sem ter apoio nenhum porque estávamos na Ditadura”, conta.

José Augusto conseguiu a liberdade através de um habeas corpus, em março de 1966 e voltou ao Rio de Janeiro. No mesmo ano, no entanto, ele teve os direitos políticos cassados por 10 anos pelo Regime Militar.

Todas essas adversidades acabaram por deixar o governador cada vez mais debilitado, até que no dia 3 de abril de 1971, ele acabou falecendo no Hospital Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro. “Quando recebi a notícia fui em outro mundo e voltei porque ele estava bem, conversando”, conta. 

Humberto de Alencar Castelo Branco, ex-ditador criou lema ‘Integrar para não entregar’ para justificar ocupação da Amazônia — Foto: Palácio do Planalto/Reprodução

Resistência nos anos 70 

Se nos primeiros anos da Ditadura Militar houve pouca resistência e até mesmo apoio entre a classe política no Acre, a situação começou a mudar a partir da década de 1970. Oprimidos pelas políticas de ocupação da Amazônia, os seringueiros e trabalhadores rurais começaram a se organizar para resistir aos desmandos da ditadura.

O lema ‘Integrar para não entregar’ surgiu com o marechal Castelo Branco, ainda nos anos 60. A ideia era ‘colonizar’ a região Amazônica e assim evitar que a região fosse ‘invadida’ por estrangeiros e subversivos. Em julho de 1970, já no governo do general Emílio Médici é lançado o Plano de Integração Nacional (PIN).

A medida dá início à migração de fazendeiros do Sul e Sudeste do Brasil para o Acre e consequentemente aumenta o desmatamento. É nesse contexto que surge a resistência.

“No Acre a grande resistência ao projeto da Ditadura brota a partir do movimento dos seringueiros. As políticas de intervenção na Amazônia, o reordenamento das tradicionais formas econômicas, a expropriação das comunidades que estão na floresta e vem para a cidade e a resistência a esse projeto econômico é que vai provocar uma resistência política”, explica o historiador Gerson Albuquerque.

Os sindicatos começam a se organizar nas cidades de Brasiléia e Sena Madureira e a expulsão dos moradores da zona rural para os centros urbanos acabam estimulando o crescimento de outros movimentos.

“Aí sim você vai ter nesse contexto dos anos 70, pessoas dentro de Rio Branco, professores e estudantes começando a pensar e articular a necessidade de tomar uma posição a favor desses movimentos”, ressalta. Artistas, comunidades eclesiásticas de base e estudantes secundaristas começam a se mobilizar. 

Terror psicológico 

O historiador diz desconhecer casos de desaparecidos políticos no Acre, porém, o terror psicológico era constante. “A repressão não se dá só nesse modelo. Aqui no Acre houve uma a violência muito forte por causa do medo porque é uma sociedade paroquial, todo mundo se conhece e as artimanhas da tortura são mais acentuadas. A violência simbólica ela é tão agressiva e impactante quanto a violência física”, reflete.

Por Yuri Marcel, g1AC — Rio Branco* 

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