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Domingo, 28 Abril 2024

Trançados indígenas são uma forma de transmissão de conhecimento na região amazônica

No dicionário da língua indígena Wai Wai, utilizada por povos da região do Rio Mapuera, um ramo novo que sai da base de uma planta é chamado de peta, "bocheca". No mesmo dicionário, os galhos de árvores são "virilhas", a castanha é o "nariz" do caju e a ramificação do arumã, planta típica da região, é o "joelho". O hábito de atrelar partes do corpo humano— e até mesmo sentimentos — a plantas é praxe nas comunidades do noroeste do Pará, que cultivam uma relação de igualdade e profundo respeito com a natureza. A partir de pernas, costelas, ossos e narizes se constrói, com muito consentimento e diálogo, não um frankenstein, mas uma tradição milenar de artefatos trançados, que é, atualmente, uma das principais fontes de renda da região.

"Os trançados, para os Mapuera, são vegetais que são desmembrados, seguem a vida junto aos humanos e depois se desfazem, voltam para a terra", afirma o arqueólogo Igor Rodrigues, pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnografia (MAE) da USP e autor da tese 'Tramas da Tecnologia: etnoarqueologia da variabilidade dos trançados dos povos do Mapuera'. 

Em sua pesquisa, que foi uma das vencedoras do Prêmio Capes de Tese 2023, o arqueólogo estudou estampas trançadas em diversos objetos da cultura Wai Wai e analisou mudanças históricas e geográficas nos padrões estilísticos.

Tecendo em tuuwa. Foto: Igor Rodrigues
Além de impulsionar a economia da região, os artefatos trançados também perpetuam mitos e saberes tradicionais, e podem servir como método de distinção social. "Eles remetem à memória e à história desses povos", explica o pesquisador, que conta ter enfrentado dificuldades ao estudar artefatos perecíveis.

Transmissão de conhecimento e potência 

Os trançados Mapuera são produzidos pelos homens das aldeias e aparecem em diversos objetos do cotidiano, como pentes de cabelo, abanos, cocares, bandejas e prensas para retirar caldo de mandioca. O papel das produções trançadas é estrutural na vida dos Wai Wai: são utilizadas no preparo de alimentos, na caça e na coleta de vegetais, na confecção de outras produções manuais e também têm função estética. Mas sua relevância não se restringe somente a seus usos práticos.

"É uma forma de educar, de contar histórias e também criar potências para determinados objetos",

explica Rodrigues.
Um exemplo nítido da importância dos padrões de cestaria na difusão de saberes é a recorrência de estampas trançadas, que ilustram o pedúnculo da castanha-do-pará, conhecido por suas propriedades medicinais. A representação do fruto nas cestarias é uma forma de difundir esse conhecimento para gerações futuras; ao ensinar o padrão do pedúnculo — também chamado de nariz — ensina-se também sua importância medicinal e suas aplicações práticas.

Os padrões de cestaria são, ainda, uma forma de distinção social, segundo Rodrigues. "Se um xamã tinha um cesto com desenho de escorpião, significava que ele tinha um contato com o espírito do escorpião; que as coisas que ele guardava ali estavam potencializadas por esse espírito", conta. Um fenômeno semelhante aparece na confecção dos abanos, que sempre apresentam padrões com desenhos de aves, "para dar uma potência de fazer vento".

Além de analisar os objetos individualmente, Rodrigues comparou os trançados Mapuera com as produções de comunidades vizinhas, para entender até que ponto as técnicas são reflexos de grupos étnicos mais amplos. Ao compará-los, percebeu várias características em comum em trançados de grupos geograficamente próximos. De acordo com a tese, o fenômeno é causado pelas dinâmicas sociais dos povos da região: segundo a tradição, são os homens que saem de suas comunidades e integram outros povos para se casar e, nesse intercâmbio cultural, compartilham padrões e técnicas de trançado.

"Os trançados são feitos de tramas. Tramas sociais, saberes de vários povos entrelaçados"

Fotos: Igor Rodrigues

Imersão nos trançados 

Durante sua estadia no noroeste do Pará, Rodrigues foi vítima de uma planta irritadiça: o arumã. Enquanto preparava a palha para o trançado, cortou a mão diversas vezes na planta amazônica. O comportamento violento era normal, explicou o colega Wai Wai que o acompanhava; é preciso lidar com o arumã com calma, sem reclamar ou xingar, senão ele castiga o artesão e deixa cicatrizes. "É uma troca, existe uma negociação com o próprio vegetal", explica o pesquisador, que passou, ao todo, cerca de seis meses na região.

Para compreender a importância social e cultural dos trançados, Rodrigues participou de todos os processos de produção dos artefatos; desde incursões na mata para reconhecer os diferentes tipos de vegetal até a elaboração de estampas trançadas. Nesse processo, aprendeu que não são todas as plantas que podem ser retiradas da mata, que só se coleta aquilo que for necessário — e também sofreu as consequências físicas. "Para trançar, você usa todo o corpo; dói as costas e o joelho", relata. O arqueólogo também participou de experiências imersivas: comeu o verme que vive dentro do arumã, conhecido por aumentar a inteligência, e consumiu uma bebida feita a partir do ninho do pássaro japiim – também conhecido como tecelão -, que, na cultura Wai Wai, é o dono das manufaturas.

Japiim (Cacicus cela). Foto: Doug Janson/Wikimedia Commons

Além dos trançados que viu no trabalho de campo, o pesquisador estudou produções da região do Rio Mapuera presentes em acervos digitais de museus ao redor do mundo, como o Museu do Índio e o MAE da USP, além de instituições nos Estados Unidos e na Suécia — e também visitou presencialmente uma exposição na Dinamarca. "Minha pesquisa foi um entrelaçado de museus e etnografias", conta. Rodrigues questiona, contudo, a seleção das obras presentes nesses museus, que exclui certos tipos de trançados. "Geralmente costumam ter coisas mais belas aos olhos ocidentais", completa o pesquisador, que estudou mais de 20 classes de trançados e 65 subclasses.

"Os trançados são uma síntese de todo o Cosmos, de toda a relação entre os seres", comenta.

Desafio arqueológico

Enquanto as cerâmicas ficam preservadas por milênios, os trançados — feitos a partir de matéria orgânica — estão fadados ao desaparecimento; um desafio para a arqueologia, que costuma lidar com artefatos mais duradouros. "Por ser perecível, a gente não estuda muito", conta Rodrigues, que analisou peças produzidas a partir de 1900. A dificuldade é ainda maior em países como o Brasil, que tem um solo majoritariamente tropical, segundo o pesquisador. Em outros países, como os Estados Unidos, são encontrados trançados que datam de 12 mil anos.

A partir dos trançados encontrados atualmente nas comunidades, é possível também estudar a história por trás da técnica. 

"Os trançados carregam uma antiguidade; não no objeto em si, mas na tradição". 

Rodrigues defende que é possível estudar o passado a partir de elementos do presente, como evidências ecológicas. "A gente tem que olhar também para a floresta; não adianta ficar só debaixo da terra", afirma o pesquisador, citando o arqueólogo indígena Jaime Xamen Wai Wai, que defende que a mata e seus vestígios vegetais carregam um histórico do manejo humano na região. "É sustentável; o que eles produzem se recicla e volta para a terra, para gerar uma outra vida", finaliza o pesquisador.

Presidente Luís Inácio Lula da Silva e Cacique Raoni Metuktire. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Futuro e atualização 

A mudança nos hábitos de consumo globais vem impactando as produções da região do Rio Mapuera, que se atualizam para se adequar ao público. Um exemplo desse movimento é a criação de porta-smartphones de trançados, que dividem espaço com padrões seculares, em um emaranhado de passado e presente. Os trançados Wai Wai ganharam destaque na mídia em 2023, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi fotografado com um cocar trançado, um presente do cacique Raoni Metuktire.

Apesar das mudanças, os Wai Wai têm sido cada vez menos estimulados a vender seus trançados, conta Rodrigues, que atribui a isso uma falta de valorização da prática. "Um cesto, por exemplo, é belo, complexo e valioso, mas isso é pouco conhecido, e por isso é economicamente pouco valorizado", explica o pesquisador.

*O conteúdo foi publicado originalmente por Jornal da USP, escrito por Laura Pereira Lima, estagiária sob supervisão de Tabita Said e Antonio Carlos Quinto 

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