Essas urnas funerárias são conhecidas, pelos cientistas, como pertencente à fase Tefé da Tradição Polícroma da Amazônia
Urnas funerárias de populações indígenas ancestrais foram encontradas em ótimo estado de conservação no quintal da casa de Ciriaco Silva, 58 anos, por sua filha Késia Silva, 28 anos. Os artefatos arqueológicos foram localizados em uma comunidade ribeirinha no município de Alvarães, região do Médio Solimões, Amazonas. Os moradores tiveram o cuidado de retirar o material do solo e preservá-lo. O Instituto Mamirauá organizou no dia 1° de março uma expedição até à comunidade para coletar os objetos e realizar pesquisas preliminares no local.
“Encontrar essas urnas trouxe para nós uma curiosidade de saber que aqui onde nós moramos existia uma aldeia que deixou esse registro, despertou o interesse de saber quem eram eles e o que eles faziam”, relata Késia Silva, moradora da comunidade. Seu pai, Ciriaco, afirma:
“Nós não sabíamos que existia esse material aí, ficamos surpresos com esse achado. Creio que seja uma descoberta muito imporante”.
“As urnas funerárias são recipientes cerâmicos, normalmente com várias simbologias expressas em seu corpo e que eram utilizadas para armazenar e enterrar os ossos de seus entes queridos. E assim como qualquer sociedade no mundo, sempre houve um cuidado especial para quem falecia”, afirma Eduardo Kazuo, coordenador do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá.
Essas urnas funerárias são conhecidas, pelos cientistas, como pertencente à fase Tefé da Tradição Polícroma da Amazônia. Os diferentes povos que podem ter fabricado e utilizado essas cerâmicas viveram pela calha do rio Solimões, Negro, Madeira e seus afluentes, abrangendo boa parte do estado do Amazonas. Esse estilo cerâmico ocorreu entre os anos 800 d.C. e 1500 d.C. (depois de Cristo).
A região onde as urnas foram encontradas passou muitas décadas sem pesquisas arqueológicas e somente no início dos anos 2000 é que arqueólogos voltaram a fazer investigações através do Instituto Mamirauá, focando principalmente nas Unidades de Conservação e seus entornos. A região possui mais de 300 sítios identificados, mas somente uma dezena deles foram escavados.
Apesar de ser uma baixa quantidade de sítios pesquisados, frente ao montante identificado, esses poucos sítios já forneceram informações inéditas aos pesquisadores sobre a antiga história da região, como a localização dessas antigas aldeias, sua relação com o meio ambiente e as diferentes culturas indígenas que habitaram a região. São vestígios que abrangem desde 3 mil anos atrás até o recente período do ciclo econômico da borracha (primeira metade do século XX).
A Tradição Polícroma da Amazônia, como o próprio nome diz, é marcada pelo uso de pinturas brancas, negras, marrons, laranjas, amarelas e diferentes tons de vermelho (claro, escuro, vinho, etc.) associado com representações modeladas, de baixo e alto relevo, formando um mosaico de representações de pessoas, animais e seres míticos.
O arqueólogo do Instituto Mamirauá Eduardo Kazuo comenta, “elas representam a última ocupação indígena que antecede a invasão europeia na Amazônia a partir de 1500. Apesar de possuir um estilo decorativo muito representativo e estrutural, existem pequenas diferenças em escalas regionais, por exemplo, de vestígios dessa tradição encontrados em Manaus com os de Tefé. Essas pequenas diferenças podem representar diferenciações sociais, linguísticas ou de crenças dos diferentes povos que incorporaram essas características em seus objetos cerâmicos. A cultura não é estática. Ela é dinâmica, orgânica e fluída, podendo se transformar ao longo do espaço e do tempo”.
Quase todas as comunidades ribeirinhas, bem como as grandes cidades amazônicas, estão sob antigas aldeias indígenas, o que faz com que acabe sendo provável encontrar esses vestígios. Neste caso, vários moradores entraram em contato para saber mais sobre o que eram essas peças, o que fazer com elas e quem poderia ser acionado para essa pesquisa. O mais recente contato veio através dos professores do IFAM-Tefé, que encaminharam os moradores ao Instituto Mamirauá, onde puderam conhecer o trabalho do grupo de pesquisa e observar outros vestígios que já foram encontrados na região.
“O nosso primeiro passo é sempre conversar com a comunidade ou pessoas envolvidas nos achados. Explicar o que é arqueologia, como ela trabalha, como funciona a legislação do patrimônio arqueológico, o que seriam essas peças e sua antiguidade. Compartilhar as informações é a principal ação que devemos fazer, pois somente com a conscientização do valor histórico e cultural dessas peças é que as pessoas começam a valorizar o nosso patrimônio arqueológico. E depois, caso eles tenham interesse, podem doar as peças para que ela passe por uma curadoria mais fina, restauros, estudos e um acondicionamento adequado para evitar sua degradação ao longo do tempo. É importante que as populações se apropriem desse material arqueológico e o incorporem nas suas histórias de vida”, afirma Eduardo Kazuo, arqueólogo do Instituto Mamirauá.
A arqueologia no Instituto Mamirauá surge em 2001, por uma demanda dos próprios moradores da Reserva Amanã, onde eram encontrados muitos objetos inteiros nas comunidades locais. Com isso, o Instituto Mamirauá começou um movimento de iniciar as pesquisas arqueológicas na região para atender a demanda desses moradores. Hoje, o Instituto Mamirauá é o único centro de pesquisa arqueológica, autorizado pelo IPHAN, que está fora da capital Manaus no estado do Amazonas. Por conta disso, acaba cobrindo as áreas do estado do Amazonas onde as instituições de Manaus acabam não conseguindo alcançar devido às dificuldades logísticas.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Instituto Mamirauá, escrito por Eduardo Kazuo e Miguel Monteiro