Historicamente, as funções de cacique e pajé, importantes nas comunidades indígenas, são exercidas quase sempre por homens. Cabe a eles liderar, orientar e proteger seus conterrâneos, garantindo seu bem-estar e respeito às suas terras e tradições. No entanto, desde os anos 2000, e particularmente na última década, uma mudança vem acontecendo e já não é difícil encontrar mulheres como cacicas, pajés ou como lideranças em suas comunidades. Dentre essas desbravadoras, há três Kayapó de uma mesma família: as irmãs O-é e Maial Paiakan, e Tuíre Kayapó, tia delas.
O-é sucedeu em 2020 o seu pai Paulinho Paiakan, vítima da Covid-19, como cacica da aldeia Krenhyedjá (PA), função transmitida dos pais para os filhos homens na tradição Kayapó. Por ser mulher, O-é não passou pelo processo de preparação dos caciques dedicado aos homens, que dura anos. Apesar disso, não surpreende que ela tenha alcançado o papel de liderança. Ele foi vislumbrado desde a infância de O-é, quando seu pai, em decisão ousada para a época, levou as filhas para estudar na cidade – ainda não havia escola na aldeia.
Este comprometimento, a hereditariedade, a boa capacidade de se expressar, a relação harmoniosa com todos e o conhecimento formal adquirido foram fundamentais para que, após a morte do pai, lideranças da aldeia e da etnia decidissem por O-é como cacica. “Demorou um tempo para eu aceitar, pois ainda estava abalada, mas decidi assumir. Mesmo em luto, esse desafio é uma forma de honrar a batalha do meu pai ao criar filhas mulheres e, claro, em defesa do nosso povo”, conta ela.
Assim como O-é, sua irmã Maial, mais nova, também estudou na cidade e se tornou a primeira Kayapó (entre homens e mulheres) a se formar em uma faculdade. Embora não ocupe uma posição “formal” como a de cacica, a bacharel em Direito vem representando o seu povo por anos na defesa de seus interesses. Atuou como assessora parlamentar da deputada Joênia Wapixana no Congresso Nacional e, atualmente, é parceira do TFA no processo de tradução para a língua Kayapó de importantes marcos legais sobre os direitos dos indígenas. “Assim, poderemos falar em nossa língua materna nas reuniões. Será um novo instrumento para que jovens e mulheres atuem tanto no âmbito regional quanto no nacional”, explica.
Paulinho não é a única referência de O-é e Maial. Quando crianças, ambas viram o nome de sua tia, Tuíre Kayapó, ganhar notoriedade internacional após um gesto ousado. Durante o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, realizado em Altamira (PA) no ano de 1989, em protesto contra a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu, Tuíre, em uma atitude de resistência, confrontou o então presidente de uma grande empresa de energia de forma incisiva. Um ato corajoso que fez com que a indígena, aos 19 anos, ganhasse a admiração de sua comunidade e se tornasse, portanto, um símbolo para as meninas Kayapó. Hoje, 33 anos depois, Tuíre segue atuando em favor das pautas indígenas e orientando outras mulheres dentro das aldeias.
A chegada de mulheres a posições de destaque também vem ocorrendo em outras etnias. Hushahu Yawanawá tornou-se no início dos anos 2000 a primeira mulher do seu povo a se tornar pajé, ou seja, uma líder espiritual. Por meio de seu conhecimento, ela busca contribuir para o empoderamento de outras indígenas. Desde 2011, Anayliô Tuxá exerce a mesma função em sua aldeia. Juma Xipaya foi a primeira cacica da aldeia Kaarimã. Assumiu aos 24 anos, em 2005. Já a deputada federal Joênia Wapixana, eleita em 2018, e Sônia Guajajara, candidata à vice-presidência da República no mesmo ano, são, hoje, representantes dos povos originários na política nacional e, claro, também lideranças de seus povos.