Mitos para conhecer a cultura do povo indígena Paiter Suruí

Para além de sua luta por reconhecimento, os Paiter mostram uma rica cultura inclusive por meio de seus mitos.

Desde o contato oficial, em 1969, a aproximação com os não indígenas gerou profundas mudanças sociais entre os Paiter Suruí. Estas, entretanto, não anularam sua índole guerreira, que motivou a luta desse povo pelo reconhecimento e a integridade de seu território, entre os Estados de Rondônia e Mato Grosso.

Este povo tem alcançado visibilidade nacional investindo em mostrar sua cultura e, agora, por ser o primeiro povo indígena à administrar uma agência de turismo no país.

Para além de sua luta por reconhecimento, os Paiter mostram uma rica cultura inclusive por meio de seus mitos. Nas narrativas Paiter são claros os aspectos referentes à vida social, o universo mítico tradicional, os ritos de passagem, a origem do mundo e outros aspectos da vida cultural. 

Entre as várias histórias, é possível destacar algumas mais populares. Conheça:

Foto: Divulgação/PPBio

A lua

Foi assim como vai ser contado, que a lua surgiu. Havia uma família, da metade ritual dos íwai, os da comida, que se ocupava em preparar a bebida para a festa, indo colher cará na roça para cozinhar. Nessa família havia dois irmãos e duas irmãs. Uma das meninas, muito bonita, estava akapeab, em reclusão por estar na primeira menstruação. Devia se casar, como deve ser, com seu tio materno, quando acabasse o período de resguardo.

O tio materno, sendo da outra metade da aldeia, a do metareda, ou do mato – pois por ser da outra metade é que podia casar com ela – estava longe, na clareira no mato, preparando flechas e outros presentes que essa metade tinha que dar para a da comida, na festa.

Uma noite, um homem veio à maloquinha da menina, deitou-se na sua rede e namoraram. Bem baixinho, para ninguém ouvir, ela perguntou:

– É você, meu tio, que está fazendo isso comigo?

– Sou eu, sim, seu tio materno…

Muitas e muitas noites ele voltou. Quando escurecia, ele vinha sempre, e costumava deitar-se com ela. A menina perguntava:

– É você tio?

– Sou, sim…mas não conte para ninguém, só quando você puder sair da maloquinha para casar.

A menina ficou desconfiada, depois de um tempo – seria mesmo o seu tio, o visitante noturno? Resolveu que ia passar jenipapo no rosto dele.

À noite, como de costume, deixou encostada a portinhola de palha, o labedog, na parte de trás da maloca, para ele entrar com facilidade. Já tarde, ele veio, e se deitou com ela na rede.

– Oi, tio, é você?

– Sou eu, sim!

Ela pegou o jenipapo, e passou-lhe no rosto. Ele estranhou, mas ela disse que era água, para diminuir o calor.

No dia seguinte, ela contou para a mãe o que vinha acontecendo.

– Mãe, será meu tio, mesmo, que me namora toda noite? Não pode ser, não, minha filha, tio não faz isso com a sobrinha, só quando acaba a reclusão. Se fosse outro, aí poderia ser…

– Você já perguntou mesmo se ele é seu tio?

– Perguntei! E ele disse para eu não contar a ninguém!

– Por que há de querer segredo? Se ele é seu tio, você é mulher dele, não dos outros, pode esperar você sair do resguardo!

– Hoje eu passei jenipapo no rosto dele, mamãe! Você pode ir ver, lá no metareda, no mato, se é ele mesmo! 

A mãe achava que não era o tio pois este não entraria às escondidas na maloquinha. Se fosse outro pretendente, por exemplo um primo, então sim, tentaria namorar a mocinha à revelia do marido mais legítimo, o tio. Foi à clareira onde ficava a metade do mato, durante a seca, e voltou assustadíssima:

– Minha filha, o rosto do seu tio não tem nenhum jenipapo, nenhuma pintura. É o rosto do seu irmão, aqui na nossa metade, que está pintado! 

A menina pôs-se a chorar, no maior desespero: 

-Então é meu próprio irmão que vem me namorar, todas as noites! 

A mãe também chorava, e disse que eles tinham que ir embora para o céu. O irmão, adivinhando ter sido descoberto, veio chegando, já com todas as suas coisas, seus cestos, seus pertences. A irmã saiu da maloquinha, pondo fim à reclusão, mas sem se pintar de jenipapo, nem se enfeitar como uma noiva, como seria se fosse casar com o tio. 

-Mãe! Enfie a ponta da flecha no meu corpo para eu morrer! -Pedia para a mãe. Queria morrer mesmo. 

-Não, vocês não vão morrer, não! – respondeu a mãe. -Vocês vão para o céu. 

E os dois irmãos subiram para o céu por um cipó. Desde então apareceu a lua, que antes não existia. O lado escuro da lua é o rosto do irmão , pintado de jenipapo.

Narrador: Dikboba (1990)

Mito publicados em:
MINDLIN, Betty. Vozes da origem: estórias sem escrita – narrativas dos índios Surui de Rondônia. São Paulo: Ática, 1996.

A Cigarra

A necessidade de proteger as crianças pode ser observada na estória da Cigarra: contam que antigamente crianças foram pegas roubando amendoim da roça dos Gamep, e que estes, como punição, costuraram a boca das crianças e os amarraram a uma árvore. As crianças gritavam mas o som não saia. Ao escurecer elas viraram cigarras.

Há muito tempo atrás, os Gamep plantaram uma roça imensa, carregadinha de amendoim. Quando chegou a época da colheita, não paravam de comer, e viviam fazendo makaloba de amendoim, uma das espécies da bebida fermentada.

As crianças de outros grupos, que não os Gamep, viram quanto amendoim eles comiam e ficaram com vontade. Descobriram o lugar da roça e pegaram o hábito de ir lá roubar. Comiam até fartar-se, e nunca eram apanhadas. Os Gamep se deram conta do furto e ficaram à espreita, um dia, pegando-as em flagrante:

– Vocês vivem estragando nosso amendoim, mas agora vão aprender de uma vez por todas a nos deixar em paz!

Os donos da roça ficaram pensando o que poderiam fazer para punir a criançada. Resolveram costurar a boca de alguns dos ladrõezinhos, os menores, que não haviam conseguido fugir em tempo, e os amarraram a uma árvore, com boca costurada.

Os coitadinhos queriam gritar para chamar os pais, mas só saía um sussurro da garganta. Os donos da roça observavam de longe, escondidos.

O dia inteiro as crianças amarradas esgoelaram-se para gritar, e só saiam os sons guturais: “ruuu…ruuu…ruuu…”.

Quando começou a escurecer, elas viraram cigarras.

Só então os adultos se assustaram, com remorsos.

– Onde vão vocês?

Mas era tarde. Lá se foram elas. Por isso, hoje em dia, as cigarras, nangará, gostam de ficar agarradas às arvores.

Narrador: Dikboba (1988)

Mudanças culturais e perda de identidade

Orgulhosos por serem um povo guerreiro, os Paiter possuem uma série de heróis, que costumam ser exaltados em suas histórias, onde falam de guerra e de morte, da presença dos não índios e como estes já traziam destruição e morte mesmo no tempo antigo.

As narrativas tradicionais vêm continuamente sendo substituídas pelas novas religiões cristãs, apesar de certa resistência de algumas famílias e comunidades. Os pajés foram discriminados e sofreram enorme pressão dos missionários, fazendo com que todos deixassem esta tradição e conhecimento milenar na área espiritual e de saúde.

Ouvir estória de pajés hoje em dia é muito raro, pois as religiões não indígenas com presença missionária na área proíbem que sejam repassadas aos mais novos. Alguns membros da comunidade se ressentem deste fato e constantemente relatam o que as religiões cristãs têm causado à sua cultura. As igrejas presentes nas aldeias (por meio de visitas periódicas dos missionários) são a Batista, a Católica, a Luterana e Assembleia de Deus.

*Com informações do Instituto Socioambiental


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