Conheça a história dos Nukinis, o ‘Povo da Onça’ no Acre

Terra indígena é vizinha do Parque Nacional da Serra do Divisor, no interior do Acre. Etnia tenta expandir a demarcação de terra.

“A luta é para voltarmos ao nosso território de origem. Hoje, se a gente conseguir esse espaço, não vamos mais habitar, mas guardar como território sagrado”.

A frase é dita pela liderança indígena Nukini, o pajé Pstyani Nukini, ou Leo Nukini, ao justificar a luta de seu povo para ampliar a demarcação da terra, homologada somente em 1991 após ser identificada em 1985. Os Nukinis, conhecidos também como o Povo da Onça, estão em uma terra vizinha ao Parque Nacional da Serra do Divisor.

São 32.581,94 hectares de terra no município de Mâncio Lima. A Terra Indígena Nukini faz parte de uma das áreas mais protegidas do Brasil e os Nukinis reivindicam a ampliação de seu território oficial, de modo a incidir sobre uma porção do parque.

O acesso a essa terra indígena é feito apenas por meio de barco, fica às margens do Rio Moa e são mais de 8 horas até chegar ao local.

“A Serra do Divisor é nosso território de origem. Nossos ancestrais habitavam aquela região, tanto que lá tem muita marca de cerâmica, as malocas, além de muita erva medicinal que a gente não encontra desse lado. O que queremos é resguardar aquele território, que é sagrado. Lá tem muito a força da medicina, muito encanto do povo, até porque somos o povo da onça”, diz o pajé.

Nukinis tentam manter rituais para cura nas terras indígenas. Foto: Arquivo pessoal

A liderança acredita ainda que com a implantação do Ministério dos Povos Indígenas algumas demandas devem avançar. Já no âmbito estadual, Francisca Arara, do povo Arara, foi nomeada em janeiro como Assessora Especial Indígena no gabinete do governador Gladson Cameli. Essa representatividade, segundo o pajé, deve fazer ecoar a voz dos povos tradicionais junto aos governos estadual e federal.

“Estamos com esperança que essa política abra mais portas, porque no governo anterior as coisas estavam mais difíceis, mas o Ministério Indígena deu esperança de alcançarmos mais vitórias, espaço, não por ganância, mas é uma espaço para ensinar as pessoas a preservarem a natureza, o meio ambiente, cuidar da terra como merece ser cuidada”.

Atualmente, a liderança contabiliza 900 pessoas divididas em sete aldeias, todas na região de Mâncio Lima e algumas até mesmo na cidade. Devido ao intenso contato com os seringueiros, pequenos produtores e ribeirinhos existentes na região do alto Juruá, os Nukinis incorporaram muitos de seus costumes, mas cultivam sua singularidade principalmente no que diz respeito à sua organização social.

A ampliação da terra, segundo o pajé, é necessária também para acompanhar o aumento populacional do povo. “Já sofremos ataques e invasões de assentamentos, populações que estão querendo invadir por trás da terra e precisamos ampliar para sobrevivência”, enfatiza.

Cura espiritual 

Diferente de outras etnias, o povo Nukini não usa ayahuasca como atividade turística, mas sim ainda mantém o uso do chá como cura espiritual e também para esclarecer a governança. Para o povo desta etnia, quando um líder está em dúvida sobre as decisões a tomar, a ayahuasca clareia as ideias.

“Nós sofremos com o choque do contato de duas culturas, não indígena e indígena, e muita coisa é considerada perdida, mas a única coisa que nunca deixou de acontecer foi os rituais espirituais voltados para nossa metodologia de cura”, explica.

A atividade econômica da comunidade é produção coletiva, como roçado e venda de artesanato. Na comunidade, há também produção de farinha e agricultura familiar. Porém, os rituais espirituais foram repassando de geração para geração e, segundo o povo, é uma das forças mais potentes do Nukinis.

“A gente vê o espiritual como uma coisa sagrada, a cura é para todo ser humano que existe na terra, às vezes não é uma coisa que pode comercializar. Não podemos fechar a porta para quem precisa de tratamento. Quando vem em busca de cura, nós abrimos as portas, porque a cura é para qualquer pessoas, independente de raça, cor, etnia, afinal todos temos sangue vermelho, somos iguais”.

Foto: Paulo Roberto Parente/Arquivo pessoal

Além da ayahuasca, as lideranças também usam banhos de ervas e sopro – vai do que achar necessário para aquele tratamento específico. Além disso, os rituais espirituais que tem como objetivo a cura não são feitos em eventos festivos na comunidade.

Já a liderança que está à frente de uma cura precisa de silêncio e opta por calmaria. Ao todo na comunidade indígena dos Nukinis, 28 pessoas consagram a ayahuasca e geralmente cada ritual é feito de forma individualizada.

“É muito raro a gente se encontrar para consagrar. Eu consagro aqui, minha avó em outra aldeia, cada qual em seu canto com seu material de trabalho e a gente usa nesse sentido, de levar cura espiritual, emocional, e material. Então, é uma coisa muito séria”, destaca.

Neste período pós-pandemia, o pajé diz que as pessoas que procuram a medicina tradicional, em sua maioria, relatam o aumento da depressão. “Aqui nós fazemos amigos. Minha vó sempre diz que, mas vale termos amigos do que clientes. E esse é o ensinamento que a gente leva.

Fora o uso para a cura espiritual, os indígenas também usam o chá para governança: “Quando é necessário tomar uma decisão na comunidade, os líderes se reúnem, consagram ayahuasca e, depois daquela noite de ritual, sabe que caminho vai tomar. Então, reúnem todo mundo e compartilham o ensinamento. Porque ayahuasca é a chave que abre a porta para outras medidas, para outros caminhos, outra dimensão, outra linhagem de entendimento que nossos olhos, sem a força dela, não conseguem enxergar”.

Matriarca Nukini

Aos 83 anos, ela já tem o andar cansado e precisa de apoio para dar alguns passos, mas a mente segue sã. Com voz serena, a matriarca Arlete Muniz, Ynesto Kumã na língua nativa, hoje passa seu legado para o neto, Leo Nukini. Cabe a ele dar continuidade ao trabalho que ela já herdou dos seus pais.

A pajé perdeu as contas de quantas pessoas atendeu, incluindo partos, curas espirituais e até outros atendimentos que precisaram de seu conhecimento ancestral. Ela tem uma maloca que fica reservada para fazer suas curas ou apenas se conectar com a natureza.

Na porta de casa, ela tem uma foto do Irmão José, missionário que passou pelo Juruá entre as décadas de 60 e 70, e que passeava pelas redondezas levando fé e contando histórias. Muitas pessoas na região são devotas do missionário.

Maloca é usada por pajé de 83 anos para cura espiritual. Foto: Tácita Muniz/g1 Acre

Como a terra indígena fica às margens do Rio Moa, anos atrás o local era ainda mais de difícil acesso e muitas vezes o socorro vinha dos povos tradicionais. Pelas mãos da pajé, pelo menos 38 pessoas nasceram.

“Não trabalho mais como antes. Ainda faço minhas curas quando vejo que a pessoa está precisando muito. Quando comecei a atender eu tinha um pouco mais de 30 anos, porque foi quando meu pai e minha mãe se cansaram e eu tive que assumir. Algumas pessoas precisam passar dias aqui comigo, mas quando eu vejo que é algo que foge das minhas mãos, eu peço que a pessoa procure ajuda”, conta.

Protagonismo feminino

Ynesto Kumã é uma das mais fortes líderes espirituais do seu povo que hoje passa o conhecimento para o neto. Leo Nukini, no entanto, destaca que a mulher sempre teve um papel importante dentro de seu povo.

“A mulher não está nem abaixo do homem e nem acima. A frase do nosso povo é que ninguém na frente, ninguém atrás, todo mundo lado a lado e as mulheres são uma peça importante porque embelezam com o canto, voz, conhecimento e com a gestação. Além disso, as mulheres ainda ajudam no roçado, caça e na caminhada espiritual não tem como descrever o tamanho da força da mulher”, diz o pajé.

Cada liderança avalia e faz a cura necessária para quem procura ajuda. Foto: Arquivo pessoal

No que diz respeito à força espiritual, o pajé destaca que é uma presença importante de domínio e governabilidade.

“Admiro as mulheres porque elas dominam o espiritual, admiro minha vó porque ajudou muita gente em nosso povo, não só indígenas, mas pessoas ribeirinhas, ela atendia muitas pessoas. Antigamente não se ia na cidade, tudo era resolvido aqui e no nosso povo a mulher sempre se destacou, ela que manda em tudo”, finaliza.

*Por Tácita Muniz, do g1 Acre

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