César Félix criou o espaço ‘Café com Poesia’ para receber amantes da cultura acreana. Há declamação de poesias e outras expressões artísticas.
“Quanto menos nos vestimos da gente, mais precisamos de roupas”. O autor dessa frase é o historiador e poeta César Félix, que mantém, na varanda de casa, um espaço que é um verdadeiro catalizador da cultura acreana. Na varanda, César montou um centro cultural que leva o nome de ‘Café com Poesia’. E é na varanda dessa casa onde mora no Conjunto Bela Vista, em Rio Branco, que ele inspira e respira poesia, reunindo apaixonados por arte.
O lugar é aconchegante e acolhedor, tanto que parece se estar em casa. Ao chegar, César já adianta: “Aqui café e água não paga”, mas também não se paga a imersão que se faz em meio à arte.
No ‘Café com Poesia’ não tem parede branca. Como um livro em aberto, em cada canto há uma poesia. Com tanta informação em um só lugar, esquece-se um pouco o celular para ficar atento a tudo que aquelas paredes têm a dizer.
A ideia de César foi, ao ver a carência de espaços em que os artistas locais pudessem se expressar, criar um ambiente autônomo, alternativo e, digamos, de microfone aberto. O espaço tem como foco principal a poesia, mas também é palco de diferentes expressões artísticas.
“A ideia de criar o espaço ‘Café com Poesia’, na verdade, é pra eu ter um pouco de saúde mental, porque passei um tempo fora de Rio Branco e quando voltei identifiquei que nosso Estado é culturalmente muito rico com a ancestralidade indígena, afrodescendente e do nordeste, mas, ao mesmo tempo, tínhamos uma cidade morta culturalmente. Olha a contradição disso! Uma cidade que não olha para sua cultura”, disse.
Quando retornou ao Acre, César já trabalhava com poesia e viu que não tinha um espaço onde houvesse esses encontros. Foi aí que decidiu que sua casa seria esse local, não só para ele, mas para outros artistas que precisavam se expressar e mostrar sua arte, sem julgamentos ou amarras, mas seguindo toda liberdade poética que a arte proporciona.
“Como Galvez ensinou pra gente: ‘se a pátria não nos quer, criemos outra’, e foi o que aconteceu. Criei um espaço chamado café com poesia, onde os poetas podem se encontrar, o pessoal que gosta de arte pode se encontrar, que seja um espaço de livre comunicação, sem repressão, sem preconceito com quem entra nesse espaço”,
explica.
Em 2020, o espaço funcionava aos fins de semana unindo shows e leitura de poesia. Com a pandemia, o ambiente ficou fechado e retornou agora. O poeta diz que pretende tornar o espaço cada vez mais plural, então as atividades vão desde oficinas, teatro, declamação de poesias, apresentações artísticas, enfim, tudo que seja arte.
“Quero transformar o ambiente naquilo que ele se propôs ao nascer; um espaço cultural. AÍ temos o café da manhã com poesia todos os domingos e na parte da noite outros eventos ligados a várias outras artes, não só da música, não só da poesia. Tem lançamento de livro, artistas plásticos, teatro, roda de conversa, mostra de filmes, debates, sempre algo diferente focado para arte e cultura. Na cidade temos vários espaços que os artistas poderiam se apresentar, mas tem uma dificuldade de isso acontecer e aqui é um espaço alternativo que a gente colabora para a cultura da cidade”, disse.
O café da manhã é todos os domingos, de 7h às 12h. A leveza do ambiente também conta com móveis reaproveitados. César diz que para ele não existe lixo e parte da decoração fez com pedaços de madeira, cadeiras e outros objetos que haviam sido descartados, mas ele ressignificou.
Além do encontro de poetas, o espaço segue uma programação que é divulgada sempre na página oficial no Instagram. São debates, rodas de conversa, mostra de filmes, teatro, exposições, apresentações musicais, tudo que se encaixa na expressão cultural de cada artista que procura ser.
‘Badalo da palavra’
A poesia na casa de César brota e preenche os espaços daquele lugar e enche os olhos de quem vê. Bem na porta de entrada, ele escreveu à mão nomes de diversos poemas que tem gravado de cabeça. Ele tem de cabeça pelo menos 60 poemas.
E uma das atrações mais comentadas da casa é o “Badalo da Palavra”. Um sino posto na porta de entrada, onde a expressão é livre. Quem frequenta a casa pode pedir a palavra e, ao tocar o sino, todos são avisados que aquela pessoa vai se expressar. Voltando ao início desta reportagem, quando usamos a frase criada por César, sobre o uso de roupas para disfarçar a essência, é neste momento que é liberado mostrar a alma através da poesia.
“O encontro de poetas tem sido a marca daqui. Sempre deixo bem claro que aqui a coisa mais importante que tem é a poesia e o pessoal tem atendido esse chamado e as noites de encontro de poetas são sempre muito marcantes”, destaca.
‘Espaço independente’
Um dos artistas que expôs no local foi Jonsos Nunes, artista visual, poeta e psicólogo clínico. Ele é frequentador do ambiente e apresentou quadros da exposição “Aquarelagem”, artes que combinam com o espaço e que somaram à decoração da casa.
“Pra mim hoje a questão da arte é uma forma de estar no mundo, em um mundo violento que finge não ser excludente. Lido com isso no meu trabalho como psicólogo e na própria existência em si. Poder expressar isso através de poesia e através das aquarelas me ajuda a me manter funcional. Sou muito orgulhoso de ser louco, não troco minha loucura por um segundo de normalidade, de jeito nenhum, mas, claro, que escolho ser funcional e minha arte é bem funcional”, diz.
Para o artista, ter um espaço plural e independente como a casa de César, é crucial para que o movimento cultural no estado permaneça resistente.
“Para mim, é uma honra estar em uma espaço independente, autônomo que a gente é bem recebido, tem um espaço para apresentar sua arte, conhecer pessoas, com comida ótima, papo incrível e o César, sempre digo, é pura poesia. As pessoas precisam conhecer esse espaço, então venham no café da manhã, aos eventos e aos debates”,
afirma.
Arnaldo de Araújo também é artista e frequenta o local. Trabalhando em diversas linhas, ele diz que não vê a vida sem arte e destaca que o espaço criado por César é uma forma de abraçar os artistas locais.
“Um espaço essencial, de cuidado, acolhedor, um espaço que respira e faz a gente respirar arte para nossa natureza, existência, comunicação, liberdade de expressão e tudo mais que é necessário para a natureza humana. Esse local é extremamente necessário”, pontua.
Culturalmente forte
O ambiente também traz a outra face de César: o lado historiador. Em uma das paredes, ele começou a escrever o resultado de uma pesquisa que começou a fazer relacionada a povos indígenas já extintos no estado. Segundo ele, com pesquisas em relatórios da coroa portuguesa e outros documentos passados, já identificou mais de 90 etnias que povoaram o estado e foram extintas.
Em painéis espalhados, ele também escreve o nome desses grupos indígenas e batizou esse projeto com o nome “Os Esquecidos”.
O poeta também faz questão de manter a cultura acreana pulsante na culinária. Os pratos que a casa disponibiliza no cardápio são os mais tradicionais do estado, desde a baixaria até ao que o acreano chama de bodó – que em outros estados leva o nome de bolinho de chuva. Ele diz que faz questão de manter os pratos do acreano raiz, incluindo o cuscuz com aquele leite de castanha.
Ao criar o espaço, César quis abraçar, acolher e multiplicar as diferentes formas de arte. Soma vozes e uma varanda se torna o palco de diversos artistas: “Valorize mais os artistas do seu estado, aqui tem muitos artistas, a prova é que no pouco espaço que tenho aqui, você vê que é um ambiente humilde, debaixo de uma varanda, mas não faltam artistas com muita coisa boa. A mensagem que deixo, principalmente para quem governa o município, o estado e pra quem é da secretaria de cultura, é que olhe com mais carinho para os nossos artistas, nossa arte e nossa cultura. A gente tem valorizado muita coisa de fora, não que não seja bom, arte é universal, mas temos olhado muito pra fora e esquecido muito da nossa própria riqueza”.
E ainda usando uma das muitas mensagens que as paredes da casa de César nos dizem: “se existe poesia existe vida”. Para o poeta, a vida segue pulsante, assim como a poesia.
Filme
César também foi protagonista do filme “Um poeta na Amazônia”, que foi exibido em Toulouse, na França, em 2021. Inspirado no conturbado processo eleitoral brasileiro de 2018, o filme Un poète en Amazonie ou Um poeta na Amazônia, em tradução livre, acompanha o trabalho de um poeta acreano que propôs a literatura e poesia como forma de rebater o violento ambiente que dominou as redes sociais no período que fragmentou a sociedade brasileira.
*Por Tácita Muniz, do g1 Acre