Após destruição da Gruta de Kamukuaká, no Xingu, patrimônio cultural dos Wauja segue ameaçado

Embora a caverna seja reconhecida como sítio arqueológico pelo Iphan desde 2002 e tombada como patrimônio cultural desde 2016, a proteção legal não foi suficiente para salvaguardar a memória sagrada dos Wauja.

Foto: Divulgação/Piratá Waurá

Guerreiro e líder de seu próprio povo, Kamukuaká teria vivido nas matas amazônicas nos tempos em que o Brasil não tinha sido inventado. Sua história está registrada em marcas rupestres – com datação indefinida – em uma gruta sagrada para povos indígenas do Xingu. Às margens do Rio Tamitatoala, no Norte do Mato Grosso, ainda hoje ela guarda as gravuras nas pedras que, junto à história de Kamukuaká, refletem os hábitos sociais e culturais de alguns povos indígenas daquele território, principalmente os Wauja, cuja população é estimada em cerca de 700 pessoas.

Localizada fora do Território Indígena do Xingu (TIX), do lado esquerdo do rio Tamitatoala, a gruta de Kamukuaká é um espaço arqueológico do presente. Ou seja, tem relação direta com um povo vivo, sua cultura, tradições e rituais. Os desenhos deixados no local são representações de peixes, mulheres e outros elementos do cotidiano dos indígenas. Mas, por não ser demarcada, o local é um território em disputa.

Embora a caverna seja reconhecida como sítio arqueológico pelo Iphan desde 2002 e tombada como patrimônio cultural desde 2016, a proteção legal não foi suficiente para salvaguardar a memória sagrada dos Wauja. Em 2018, envolvida em uma série de discussões sobre a construção de empreendimentos logísticos e demarcação de terra, a gruta tornou-se também cena de um crime contra o patrimônio: inúmeras gravuras foram destruídas.

Durante o processo de tombamento no Iphan, os povos indígenas do Xingu precisaram alertar sobre os riscos da pavimentação da BR-242, ainda em 2012. Após receberem notícias de que a estrada passaria a cerca de 200 metros do local sagrado, de acordo com o relatório do Ministério Público, os Wauja enviaram à Superintendência do IPHAN no Mato Grosso questionamentos: “Por que foi tombado esse lugar? Para que existe tombamento? O que é afinal tombamento para os brancos?”.

Os riscos aos lugares e à memória da região não atingem apenas Kamukuaká. Além da rodovia, outro projeto causou reação imediata dos Wauja para requerer a proteção do sítio arqueológico: o da construção Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO). A presidente da Associação Indígena Sapukuyawa Arakuni, Yakuipu Waurá, lembra que outros espaços importantes não foram demarcados e estão vulneráveis a projetos logísticos, como a Pedra da Anta, o Flechal e o Lugar de Pegar Caramujo. “A gente sempre está ativo para dizer ao governo que [a rodovia e a ferrovia] não podem passar naquele lugar. A gente só quer que seja preservado”.

A Pedra da Anta está na mesma região de Kamukuaká, um ambiente rural entre os municípios de Paranatinga e Gaúcha do Norte, no Mato Grosso. Na tradição dos povos originários, ela é uma anta que virou rocha. Para a arqueologia, que usa da materialidade de objetos e outros vestígios humanos para entender o uso e ocupação, o lugar não é entendido como sítio arqueológico, mas a memória viva de um povo sobre o lugar resguarda o direito à proteção conforme a normativa 375/2018, do IPHAN, explica a arqueóloga Gabriele Viega Garcia.

Foto: Divulgação/Piratá Waurá

A organização dos Wauja pela proteção da gruta de Kamukuaká e para reivindicar a demarcação da paisagem ligada às tradições do povo chegou à Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX), que representa todos os povos indígenas do território xinguano. A instituição montou grupos de trabalho específicos para discutir os assuntos referentes à pauta dos Wauja, como a BR-242 e a Ferrovia, e atua nas negociações que envolvem a construção dos empreendimentos. Esta parceria de luta se fortaleceu após o crime cometido em 2018 contra a gruta de Kamukuaká.

Advogado e diretor executivo da ATIX, Ewésh Yawalapiti Waurá explica que a BR-242 está sob consulta dos povos xinguanos no Estudo de Componente Indígena, para que seja evitada a destruição dos locais sagrados. “O projeto original [1970] passa bem por cima e vai causar mais estrago ainda”, alerta. Uma segunda proposta foi entregue, com a rodovia a 1 km da gruta, mas também não foi aceita porque, além de ainda ser considerada próxima, passaria por cima da Pedra da Anta. A reivindicação é para a rodovia passar a uma distância entre 10 e 12 km dos locais sagrados, aproveitando outras estradas existentes na região, sem derrubar matas.

A extensão total da BR-242 no Brasil é de 1877,60 km, com 815,6 km no Mato Grosso. O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte), responsável pela obra de pavimentação, tem participado das reuniões de Estudo de Componente Indígenas com os povos do Parque do Xingu, e as discussões sobre alternativas seguem ocorrendo.

A FICO é outro empreendimento que traz riscos ao complexo arqueológico e cultural de Kamukuaká. A ferrovia foi projetada para facilitar a escoação da produção agrícola e mineração no Brasil e em outros países da América Latina. Para o trecho entre Campinorte, no estado de Goiás, e Vilhena, em Rondônia, o estudo de risco realizado a pedido do próprio empreendimento prevê impactos ambientais como “grandes chances de contaminação e destruição das nascentes dos cursos de água formadores do Rio Xingu”. Quanto aos espaços arqueológicos no traçado que seria da ferrovia, o documento afirma trazer “séria ameaça” ao sítio de Kamukuaká.

Responsável pelo Relatório Final de Salvamento Arqueológico da BR-242, de 2016, a arqueóloga e fundadora do Museu de História Natural do Mato Grosso, Suzana Hirooka, realizou uma pesquisa de impactos na época e chegou a conhecer a gruta. Para ela, a região é de alto potencial arqueológico e etnológico. 

“Apesar de ter essa importância memorial dos indígenas, a gruta ficou fora da reserva do Xingu [criada em 1961], mas deveria estar incluída no território”, 

defende.

Estratégias de preservação

Os Wauja enfrentam dificuldades para acessar o espaço sagrado que, atualmente, está nas fronteiras de pelo menos quatro fazendas de diferentes proprietários. Os desafios para chegar ao local levaram à ideia de uma reprodução da gruta por meio de imagens construídas com tecnologia 3D. A intenção era que as pessoas da comunidade – especialmente crianças e jovens que nunca haviam ido até o lugar – pudessem conhecer o espaço no qual surgiu parte importante da sua cultura.

Para apoiar a produção da realidade virtual, técnicos da Factum Foundation, organização sem fins lucrativos e não governamental com sede na Espanha, vieram ao Brasil em 2018 para conhecer e registrar a gruta de Kamukuaká. De modo geral, a fundação propõe-se a “demonstrar a importância de documentar, monitorar, estudar, recriar e divulgar o patrimônio cultural mundial” por meio de mediação digital, segundo informações disponíveis em seu site.

Trabalho de rememoração das gravuras. Foto: Reprodução/Iphan

Na época, Piratá Waurá, fotógrafo e professor da aldeia, ainda não pesquisava a história do local, mas aceitou acompanhar os representantes da Factum Foundation até a gruta de Kamukuaká. No dia 15 de setembro de 2018, durante a visita, o grupo foi surpreendido com a cena de um crime contra o patrimônio: os pedaços das gravuras estavam no chão. Nas pedras restavam apenas as marcas das ferramentas usadas para quebrar a rocha. Os desenhos rupestres que continham representações de peixes, mulheres e músicas estavam quase todos destruídos.

“Voltamos à aldeia. A gente anunciou e explicou tudo o que estava acontecendo e a comunidade ficou triste. Porque a casa, essa pedra, essa caverna, é uma fonte do nosso conhecimento milenar que atualmente é utilizado e praticado dentro das nossas comunidades, dentro da nossa cultura. O conhecimento da nossa cultura nasceu de lá e para os povos do alto-xinguanos. Não só dos povos alto-xinguanos, mas também dos Ikpeng e dos Bakairi”, 

lamenta Piratá.

Desde 2018, há uma investigação criminal em segredo de justiça na Polícia Federal para descobrir a autoria do crime. Procurado repetidas vezes pela reportagem – por e-mail, presencialmente e por telefone -, o órgão não se manifestou sobre o caso.

Por ser ao mesmo tempo sítio arqueológico e patrimônio tombado, a gruta é protegida por pelo menos duas legislações: a Lei 3924/61, que diz que qualquer ato que importe sobre a destruição ou mutilação de monumentos, como sítios arqueológicos, “será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punível de acordo com o disposto nas leis penais”. E também o Decreto Lei 25, o qual estabelece como “patrimônio histórico e artístico nacional” os bens existentes no Brasil “cuja conservação seja de interesse público”, seja por sua vinculação a fatos memoráveis, “valor” arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

A arqueóloga Gabriele Viega Garcia reforça que a gruta “soma duas proteções e nenhuma dessas duas leis estão dando conta, de fato, de protegê-la. Por isso que os xinguanos estão reivindicando, para além do tombamento, essa demarcação do território”. Em caso de demarcação, o território onde está o sítio pertencerá efetivamente à União, com gestão e salvaguarda de responsabilidade do território do Xingu e do povo Wauja.

Wauja lutam pela expansão da demarcação

A expansão comercial para o Centro-Oeste do Brasil começou durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), em um projeto chamado Marcha para o Oeste. A proposta pretendia levar não-indígenas para ocupar a região. Uma das principais frentes foi a Expedição Roncador-Xingu, em 1943, que enviou diversas pessoas, incluindo os irmãos Villas-Bôas, para adentrar as matas fechadas, abrir estradas e pontos de pouso, além de estabelecer contato com os povos indígenas. A Expedição acabou em 1948 e foi essencial para o processo colonialista que se estabeleceu nos anos seguintes, mesmo em governos posteriores.

A passagem dos expedicionários levou, em seguida, uma série de intelectuais e jornalistas à região, como explica o Laudo Antropológico: A ocupação indígena no Parque do Xingu e adjacências, escrito em 2001 por João Dal Poz. Mas, mesmo as notícias que consideravam a ampla presença indígena na primeira metade do século XX naquela região não foram capazes de requerer uma ágil resposta das autoridades para a proteção territorial. O estudo afirma que, ao contrário, “o governo do estado do Mato Grosso movimentou-se rapidamente para liberar requerimentos e autorizar concessões de terras na zona de influência dos povos xinguanos”, enquanto o território não era discutido e demarcado.

Um apelo dos irmãos Villas-Bôas, em 1951, fez com que o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) proibisse a entrada de qualquer pessoa ou grupo no território que viria a ser a reserva indígena do Xingu. A partir deste momento, a ideia de criar o parque se consolida, principalmente com o anteprojeto de lei de 1952 que, com justificativas elaboradas pelo etnólogo Darcy Ribeiro, destinaria um território de mais de 20 milhões de hectares de área para os xinguanos. O SPI atuou no país entre 1910 e 1967, ano em que foi substituído pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Foto: Divulgação/Piratá Waurá

Atento à lentidão do Governo Federal para discutir o projeto, o estado do Mato Grosso alienou mais terras, que deveriam ficar na reserva indígena, com novas vendas e concessões para companhias privadas de colonização. Assim, o estado conseguiria “anular antecipadamente os efeitos do projeto de criação do Parque do Xingu, caso fosse aprovado”, destacou Dal Poz no laudo antropológico. Ainda segundo o autor, o governador do Estado em exercício entre 1951 e 1956 e de 1961 a 1966, Fernando Corrêa da Costa, chegou a dizer que a primeira proposta de demarcação, a do anteprojeto de 1952, era “demais exagerada” e uma “amputação do patrimônio mato-grossense”.

O resultado das alienações de terras pelo estado foi a diminuição da extensão do Parque do Xingu, que atualmente tem 2,6 milhões de hectares. Na parte sul do território, uma linha reta e imaginária, mas com uma curva chamada de “dente” por pesquisadores, passou a dividir a área do resto do estado. Neste novo traçado de área, a gruta de Kamukuaká ficou de fora, assim como a Pedra da Anta.

Foram décadas até que os indígenas aprendessem a língua do colonizador, recuperassem a densidade populacional perdida nos primeiros anos de contato com os brancos, entrassem nas universidades e compreendessem o método não- indígena de demarcação de terra, para, assim, reivindicar seus espaços sagrados que ficaram fora do território, respaldados por seu passado tradicional de ocupação.

O primeiro movimento para retomar espaços antigos pelos Wauja deu-se justamente na curva conhecida por ter o formato de “dente”, no sul da demarcação por linha reta no Xingu. Um dos conflitos é narrado no Relatório Antropológico, elaborado em 2020, por Walter Coutinho para o Ministério Público Federal do Mato Grosso. Após uma ameaça em 1989, “quando dezesseis invasores ameaçaram alguns Wauja que percorriam o rio Batovi”, os indígenas decidiram instalar uma nova aldeia na curva. Abriram e plantaram roças no local, além de construir “três grandes casas tradicionais”. Em junho de 1990, eles se ausentaram para uma cerimônia na aldeia Piyulaga, e a nova aldeia foi incendiada por um “funcionário de um fazendeiro local”. No lugar, demarcado anos depois, em 1998, e acrescido ao Parque Nacional do Xingu, está a Terra Indígena Batovi, nas encostas do rio Tamitatoala.

Nesta fase das reivindicações pelo território que não havia sido demarcado, ainda na década de 90, Kamukuaká e o risco de destruição do sítio arqueológico já apareciam no debate. Mas ainda de forma tímida. Os Wauja lutavam pela demarcação da Terra Indígena Batovi, vizinha ao Xingu e, como a gruta estava mais distante do território, os desafios eram ainda maiores.

Por isso, a primeira medida foi o tombamento como patrimônio, que ocorreu em 2010, mas não foi suficiente para proteger o local, o que resultou no apagamento das gravuras em 2018. A luta segue, agora com o pedido de revisão e ampliação da demarcação para abranger Kamukuaká que, se tiver sob cuidados do povo ao qual pertence, acredita-se, terá mais chance de ser preservado.

O pedido de revisão da demarcação é também, mas não apenas por Kamukuaká. É pela manutenção da cultura, proteção da água e das florestas. Segundo Piratá Waurá, a ideia é montar um corredor ecológico do rio Tamitatoala. “Queremos nessa luta manter a história viva. Quanto mais demarcado é, mais livre para nós mesmos, os povos, para que todo mundo possa estar conhecendo aquele local”.

Kamukuaká: história que acompanha o curso do rio

Na história de Kamukuaká, a gruta servia como casa na aldeia antiga de Tupapuihu, que significa Lugar da Pedra. A beleza do líder e as músicas do povo despertaram a inveja de Kamo, Sol, que vivia do lado direito do rio. O povo dos pássaros havia descido do céu, onde estava a aldeia deles, para a terra. Kamukuaká, ao encontrá-los, perguntou o que estavam fazendo ali. As aves explicaram que iriam furar a orelha de um dos seus jovens, quando o líder do povo que habitava Tupapuihu se interessou e pediu para que também furassem a sua orelha. Os pássaros foram embora e disseram que voltariam.

Tempos depois, todos vieram para o ritual: Kamukuaká, seu povo, os pássaros e Kamo. O líder decidiu que usaria a própria flecha para fazer o furo. Foi quando Kamo pegou o objeto e fingiu que furaria a orelha de Kamukuaká mas, no meio da festa, mirou na cabeça porque queria mesmo era matá-lo. Quando percebeu, Kamukuaká se virou e o objeto furou uma orelha. Depois Kamo lançou uma segunda flecha que acertou a outra orelha. Depois, as flechas continuaram sendo atiradas até que furaram, uma por uma, as orelhas dos jovens do povo de Kamukuaká. Kamo não conseguiu matar ninguém. A história conta o início do ritual de furação de orelha, que ocorre até hoje entre os Wauja.

Na aldeia Topepeweke, uma das nove do povo Wauja – onde atualmente mora Piratá Waurá -, a última vez que o ritual aconteceu foi em 2009. Naquele ano, uma pessoa foi escolhida para ser treinada como líder na aldeia. “Então, [o ritual] acontece quando o cacique escolhe seu novo sucessor, que poderá substituir futuramente”. A escolha se dá entre os jovens com idade de 10 a 17 anos.

Mas em Tupapuihu, no tempo de Kamukuaká, após o ritual de Furação de Orelha, os jovens foram aprisionados na gruta-casa, de onde eram controlados e vigiados por Kamo. Por mais que tentassem sair, as paredes rígidas da rocha impediam. Kamo enviou algumas aves com dentes para o lugar e mandou que os matassem, mas Kamukuaká e seus parentes deram comida e fizeram amizade com os animais, que de seus inimigos passaram a ser amigos e estar do lado do povo.

Kamo estava insatisfeito. Não conseguiu matar Kamukuaká nem com as flechas na furação de orelha, nem com as aves comedoras de gente. Por isso, mandou uma cobra gigante à gruta para comer os jovens que estavam lá em reclusão. Quando o animal chegou, os homens usaram a mesma estratégia que tiveram com os pássaros: mantê-la alimentada para que não os comessem. O professor Piratá Waurá conta que, quando acabou todo o alimento dentro da gruta, eles precisaram entregar uma pessoa: “Seguraram o homem e jogaram na boca da cobra grande, que ficou satisfeita e voltou a dormir”. Precisavam encontrar um jeito de sair dali.

Decidiram, então, mandar as aves de dentes afiados comerem as paredes de pedra. Deste modo, teriam uma passagem para fugir da gruta. ” Os animais vão comendo, quebrando os dentes, até que os parentes dos periquitos, mas aqueles de dentes afiados, conseguem furar três saídas para o céu”. Assim que isso acontece, uma liderança do povo de Kamukuaká lança sua flecha. As demais pessoas que estavam na reclusão repetem o movimento, que logo dá origem a uma corda. Assim o povo de Kamukuaká conseguiu fugir à noite, enquanto Kamo e a cobra ainda dormiam.

Quando eles estavam no meio da fuga, Kamo acordou e mandou que a cobra gigante subisse atrás deles. Mas uma das irmãs de Kamukuaká, que havia ficado escondida na gruta e guardava uma ferramenta de corte consigo, conseguiu impedir que a cobra fosse atrás deles. Com o objeto, ela corta a cobra do rabo à cabeça.

Enquanto isso, as pessoas que subiram para o céu precisaram escolher para onde ir porque lá havia a aldeia dos pássaros, mas também as de outros seres. Ao escolherem o caminho e chegarem à primeira comunidade, descobriram que erraram o trajeto e estavam na aldeia das onças, um território perigoso. Ainda assim, por estarem com fome, decidiram que um deles deveria verificar o que tinha na oca e porque o lugar estava tão silencioso. Perceberam que quase todas as onças tinham saído para caçar mas, quando um deles entrou em uma das casas, ouviu-se um rugido. A única onça que não foi à caçada estava ali dentro. Nisso, todas as onças voltaram para o céu e atacaram o povo de Kamukuaká.

Quando já não restava quase ninguém, Kamukuaká lutou com as onças e abriu espaço para fugirem novamente. Ao saírem, finalmente encontraram a aldeia dos pássaros e conseguiram a ajuda necessária para voltar para a terra. As aves trouxeram o povo de Kamukuaká de volta para casa. Piratá conta que “foram descendo aqui no rio Tamitatoala, o rio Batovi. E por isso todo o rio, cada lugar, tem uma história referente às histórias de Kamukuaká”.

Em 2020, o antropólogo Walter Coutinho escreveu um relatório sobre a gruta a pedido do Ministério Público do Mato Grosso. Ali, Coutinho explica que a história contada pelos Wauja sobre Kamukuwaká está inscrita na paisagem do rio Batovi.

“Diversos pontos ou formações dessa paisagem são interpretados pelos Wauja como uma expressão tangível da narrativa mitológica. Além das formações geográficas diretamente relacionadas ao mito, eles também reconhecem outras áreas de significado cultural, mormente relacionadas a atividades econômicas desenvolvidas pelos indígenas que ali habitaram no passado”.

Do passado ao futuro de Kamukuaká 

Cena do documentário “Wauja opanã”, de Piratá Waurá. Foto: Divulgação

Yakuipu Waurá escuta desde pequena a contação de histórias sobre Kamukuaká. Como presidente da Associação Indígena Sapukuyawa Arakuni e liderança indígena, ela está engajada na luta pela preservação do lugar. “A gente cresce e os nossos pais contam a história para nós. A gruta é um lugar que tem uma história viva. A gente vai lá para ver nossa história, de onde que a gente veio. O lugar é sagrado para nós e a gente dá muita importância e tenta proteger para o futuro”.

As histórias de Kamukuaká, contadas oralmente pelos pais e anciãos, não se perderam no tempo. Mas, cada vez mais presentes nas universidades e com domínio tanto da língua portuguesa quanto da sua própria, os indígenas reforçam com os registros escritos em livros, estudos, pesquisas e documentários a luta pela proteção da gruta, de sua memória, território e corpo na floresta.

“Essa luta não é minha, é do nosso povo ancestral. Há muito tempo a luta acontece sem o registro em documento. Só oralmente e com a sua flecha. E acaba seguindo essa luta. Então, a luta começou há 40 anos. Antes de eu existir. Depois a gente começou a usar uma nova ferramenta de luta. Como eu estudei, me tornei pesquisador e assim me inclui na luta”, 

reforça com firmeza Piratá Waurá.

Além das palavras, ele também usa em seu movimento pela demarcação e proteção do território de Kamukuaká registros em foto e vídeo. Fotógrafo profissional, ele é responsável pela produção de um documentário sobre a Gruta de Kamukuaká.

Outro projeto dos Wauja é um livro sobre a história do líder, mas que ainda depende de financiamento para ser publicado na íntegra. Uma prévia foi lançada com o nome “As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku”. A realidade virtual, iniciada em 2018, foi finalizada como um vídeo da gruta que é utilizado pelos Wauja para que vivenciem, mesmo que à distância, a gruta, já que não conseguem visitá-la presencialmente com frequência. Ainda há gravuras rupestres e cerâmicas debaixo da terra que as mudanças do tempo e do ambiente juntaram no interior da gruta, mas, para que ocorra uma escavação, é necessário antes proteger o espaço.

Na história sagrada de Kamukuaká, quando os pássaros comedores de gente chegam à gruta, o líder faz amizade com eles para trazê-los para o seu lado. É isso, segundo Piratá, que os Wauja buscam ao produzir conteúdo, trabalhar e divulgar aos homens brancos, que não a conhecem ou entendem, a cultura que eles vivenciam diariamente. “Estamos tentando fazer uma aliança com os nossos inimigos. Os não indígenas são os nossos inimigos. Eles querem acabar com as nossas florestas, então a gente está nesta luta junto com Kamukuaká”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Erika Artmann

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