Sobre o caribé em tempos de covid: um santo remédio

O caribé é um hábito alimentar dos paraenses que tem se perpetuado de geração em geração e que se consagrou não somente como um alimento.

Dentre as múltiplas possibilidades alimentares que derivam da mandioca e que marcam os modos de comer viver na Amazônia, particularmente no nordeste paraense, o caribé ocupa lugar fulcral. Trata-se de um alimento líquido, cujo ingrediente primeiro é a farinha lavada de mandioca. A referida farinha diferencia-se substancialmente das demais farinhas derivadas da mandioca, exige técnicas e modos de fazer específicos e mais elaborados, requerendo maior tempo de lavagem – seja nos sacos ou nos tipitis.

Esse tempo é necessário para torná-la mais saudáveis, pois, segundo dona Júlia Bastos, que é mandiocultora e nativa da comunidade de Arai, no nordeste paraese, “quanto mais a gente lava a massa, mais tira dela o tucupi e o azedume, e a farinha fica mais saudável, não faz mal para a gente e fica boa pros doentes comerem”. (Conversa com dona Júlia, via WhatsApp, em 28 de julho de 2020).

Isso posto, vale a pena frisar que o caribé é pensado aqui como uma bebida que dá sustança ao corpo e alma amazônica, constituindo-se em um recurso alimentar historicamente inventado pelos caboclos da Amazônia paraense, os quais atribuem ao alimento carga curativa, sendo capaz, então, de fortificar, sustentar e restabelecer aqueles sujeitos que, porventura, tenham sido acometidos por alguma enfermidade, conforme se pode notar nos depoimentos de dona Marelizia Cravela dos Anjos, nativa da comunidade Cabeceira Grande, às margens do rio Maçarapó em Barcarena, mas que vive em Belém faz muitos anos. 

Foto: Miguel Picanço

“Eu fui criada vendo minha mãe tomando e usando o caribé como um remédio, como base medicinal pra qualquer tipo de enfermidade. E a minha mãe, ela era assim, como uma mestra em remédios caseiros e alimentos que também sustentassem. Na época ela morava no interior, não tinha médico, era bem distante de hospital. Então, a minha mãe cuidava das pessoas, ela tinha essa missão de cuidar das pessoas que estavam enfermas e geralmente o que ela fazia era o caribé. (Entrevista com dona Marelizia, concedida via WhatsApp, em 04 de setembro de 2020).”

O caribé é um hábito alimentar dos paraenses que tem se perpetuado de geração em geração e que se consagrou não somente como um alimento, mas como um santo remédio.

“Teve um caso que era de uma tia […] que estava muito doente no hospital e ela teve um derrame e o médico disse que não tinha mais jeito e aí minha mãe disse “eu me responsabilizo, levo ela pra casa, não quero que ela morra no hospital”. Então, minha mãe pegou e levou ela pra casa. Chegando em casa, mamãe fez um caribé, assim bem fraquinho, um caribé de farinha lavada, bem fininha, e minha mãe botou alho nesse caribé. Minha tia não estava mais falando e nem conseguia abrir a boca, então minha mãe foi bem lentamente colocando com uma colher na boca dela, enfim, ela conseguiu tomar uma tigela de caribé e conseguiu abrir os olhos, levantar e no outro dia minha tia já estava de pé. Então, disseram que foi um milagre do caribé. (Entrevista com dona Marelizia, concedida via WhatsApp, em 04 de setembro de 2020).”

A importância e presença do caribé na vida dos paraenses é tamanha que em tempos de pandemia ele tem operado com um remédio capaz de curar e restaurar as vítimas da COVID.

Foto: Miguel Picanço

“Agora na pandemia, o meu filho e minha nora tiveram COVID e eu só cuidava deles com caribé. Eles estavam fracos, não comiam nada, aí eu fazia o caribezinho, colocavana garrafa térmica para eles tomarem à noite, e a minha nora já dizia “faça o seu santo caribé pra mim, dona Marelizia”. Era o que sustentava, eles melhoravam da fraqueza. Então é assim, o caribé é pra mim um santo remédio. (Entrevista com dona Marelizia, concedida via WhatsApp, em 04 de setembro de 2020).”

Convém aqui registrar que, apesar da importância desse alimento, não há registros escritos sobre os modos de fazê-lo. Sua receita habita apenas nas memórias das caboclas e dos caboclos. Assim, o saber fazer o caribé é oralmente ensinado e aprendido de geração a geração.

“Então desde criança […] fui vendo tudo isso, eu vendo da minha mãe e agora minha filha aprende comigo. Eu uso muito caribé, porque eu tenho problema gastro e, como eu sinto enjoou, não consigo comer nada… tudo me enjoa, aí só aceito o caribé, bem fraquinho, um pouco quente e com um pouquinho de sal e isso me faz levantar. Eu faço pra minhas irmãs, pros meus filhos quando estão doentes. (Entrevista com dona Marelizia, concedida via WhatsApp, em 04 de setembro de 2020).”

Então, de acordo com os relatos de dona Maria Olinda (que é minha mãe e nativa da comunidade de Araí e vive há 30 anos em Ananindeua, na região metropolitana de Belém) a feitura do caribé se processa da seguinte maneira: coloca-se aproximadamente 300 ml de água em uma panela ao fogo e, enquanto a água ferve, sobre uma peneira ou um crivo, se côa aproximadamente 100g de farinha.

O cuí da farinha, fina e peneirada, deve ser colocado de molho por 10 minutos. Depois disso, a água precisa ser retirada e, mais ou menos, 10 minutos depois o cuí deve ser diluído na água em fervura, de modo que a bebida, ou melhor, o mingau fique o mais aguado possível.

Foto: Miguel Picanço

Depois disso, em cinco minutos de fervura, o caribé estará pronto e deve ser consumido imediatamente, ainda quente.

Foto: Miguel Picanço

A feitura do caribé aqui mostrada contou com as habilidades de Daniele Pinheiro, que é nativa da comunidade do Cedro, no meio rural de Urumajó, no nordeste paraense, mediante orientações de dona Maria Olinda. 

Foto: Miguel Picanço

Dito isso, importa saber que na atualidade, particularmente, no contexto das cidades paraenses, o caribé tem se reinventado, quando a ele têm sido agregados outros ingredientes, tais como: alho, sal, margarina ou manteiga, a gosto de quem o faz.

Por fim, registro aqui que hoje, dia 09 de junho de 2021 estou completando 20 dias que fui acometido pela COVID e dentre as terríveis implicações que são próprias dessa doença, padeci da falta de apetite e de uma sensação de fraqueza extrema. Durante os 15 primeiros dias, tempo mais críticos da doença fui sustentado e alimentado por uma xícara de caribé, todos os dias pela manhã e a noitinha, antes de dormir. Como diria dona Marelizia Cravela, esse é um santo remédio.  

REFERÊNCIAS

PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Comida Cabocla: uma questão de identidade na Amazônia; desde uma perspectiva fotoetnográfica. Belém: Paka-Tatu, 2021.

Miguel Picanço: Doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA- UNIVERSIDAD DE BARCELONA). Pós- Doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo. ODELA/ Universidad de Barcelona.

” A vida é um nascimento contínuo ” ( Iscott).

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