Este ensaio é um recorte do campo etnofotográfico deste paraense e aprendiz de etnógrafo/antropólogo, que tem se debruçado em estudar e descrever, por meio de narrativas etnofotográficas, as experiências que advêm das pescarias do Rio Araí, em particular, dos pescadores de camarão (Litopenaeus vannamei) que habitam na comunidade de Araí, no meio rural do município de Urumajó, no nordeste do Pará.
Dito isso, torna-se necessário registrar aqui que a pesca de camarão é uma atividade que sustenta não apenas a comunidade Araí – que, por sua capacidade produtiva, ficou conhecida na região como a terra do camarão, mas que atualmente o título parece não se sustentar, uma vez que o produto não existe em abundância, como em tempos de outrora (PICANÇO, 2018) – mas também várias localidades da região bragantina e do salgado paraense, que, assim como em Araí, vivem tradicionalmente da mariscagem e da pesca artesanal.
No caso de Araí, a pesca artesanal corresponde à totalidade da atividade pesqueira de camarão, que se concretiza ora pelas muruadas fixas (imagens 4 e 5), ora pelas muruadas móveis (imagens 6 e 7).Importa saber que muruada é um artefato feito de moirões de árvores nativas, que são milimetricamente afixados distantes uns dos outros, em pontos estratégicos do Rio Araí. Para que os camarões sejam capturados, os puçás são afixados entre um moirão e outro.
Isso posto, convém registrar que tanto a ida dos pescadores para as muruadas quanto a vinda são determinadas ora pelas fases da lua, ora pelos movimentos das marés, conforme me contou seu Carlinhos, caboclo nativo de Araí e exímio conhecedor da arte de pescar:
O negócio é o seguinte, a gente sabe quando é tempo das águas grandes, que a gente chama de maré alta, pela lua, que tá cheia. Então, se a lua tá completa, é dia de lua.É dia de ir pra maré, pra muruada, porque quando a lua tá cheia, a maré também tá, como a gente chama aqui, é tempo de marezada e isso é sinal de que tá dando muito camarão. A marezada dura mais ou menos seis a sete dias. Depois desse tempo, a maré vai quebrando, vai ficando rasinha e o camarão vai falhando, vai ficando vasqueiro. Então é um grande segredo esse negócio, porque o camarão só da quando a maré cresce, que tem a correnteza, a água tá suja.
As águas grandes ocorrem uma vez durante o mês. Depois desse tempo e conforme a lua vai mudando de fase, as marés também vão. A esse processo de diminuição do volume das águas os pecadores de Araí chamam de maré de quarto. Contrariamente, as marés altas, durante as águas de quando os camarões se afugentam das muruadas. Como diria seu Carlinho: “na maré de quarto não dá camarão”, então é tempo de os pescadores voltarem para casa”.
Após a maré de quarto, inicia-se outra etapa da pescaria, agora ordenada não mais pela lua, mas, exclusivamente, pela enchente da maré. Falo das águas de escuro, conforme relatado por seu Carlinhos:
O nome águas de escuro é porque a lua não aparece, então a gente sabe que é tempo de ir para a murada pela enchente da maré. Todo dia eu vou no porto ver o tamanho da maré, aí quando ela cresce é o sinal que chegou o dia de ir pra muruada pegar camarão. Então, tá tudo escuro, porque não tem lua, mas o movimento da maré guia a gente.
Isso posto, faz-se importante frisar que os processos que culminam com a produção do camarão são decisivos para a economia de Araí, não somente pela comercialização do crustáceo, que é a base de sustentação de inúmeras famílias do lugar, como também pelas negociações empreendidas nas tabernas locais onde se processam compras dos materiais necessários para a subsistência dos pescadores durante o período da pesca, tais como: farinha d’água, sal, tabacos, cigarros etc.
Afora isso, não seria descabido asseverar que as experiências das coisas e do saber fazer a pescaria no Rio Araí povoam e sustentam não somente a economia do lugar, mas se constituem em práticas tradicionalmente elaboradas, socializadas e coletivizadas por diversos processos de sociabilidades, particularmente por aqueles proporcionados porsituações de comensalidades, que ocorrem no rancho (imagens 2 e 3) durante os processos de cocção e de degustação de camarões e deoutros frutos do mar, que, com regularidade, entremeiama mesa dos pescadores (imagens 8, 9 e 10).
Nesse sentido, faz-se necessário esclarecer que os ranchos, conforme pode ser observado nos vídeos deste ensaio, que são as casas dos pescadores durante o período de pescaria, povoam todas as margens do Rio Araí. Eles são propriedades privadas, mas durante as atividades pesqueiras se tornam casas coletivas. Isso ocorre porque nem todos os pecadores são proprietários de ranchos e por isso são hospedados nos ranchos de outros companheiros de trabalho, com quem, com regularidade, estabelecem relações parentais ou de amizade. Aliás, são essas relações de parentesco e de amizade que povoam e determinam todas experiências de pescarias de camarão no Rio Araí.
Assim, o rancho parece ser, antes de qualquer outra coisa, uma instituição social, um espaço fundamental para a continuação não somente do ato de pescar camarão, mas, principalmente, para a manutenção e perpetuação dos laços sociais dos pescadores, pois é nele que as experiências sociais se dão de maneira mais intensa, mais próximas. É ali que ocorrem, como em nenhum outro lugar do rio, os encontros que definem, perpetuam as lógicas de pertencimento aos territóriosdo pescar, do comer e do viver caboclo e amazônico, isto porque é no rancho que ocorrem as conversas mais prazerosas e intensas, é onde as decisões coletivas são tomadas e os acordos que norteiam o saber e o fazer dos pescadores são firmados. É um lugar de sociabilidade e de comensalidade ímpar, que ocorrem todos os dias logo após a finalização da pescaria de camarão.
Então, são sobre as experiências das coisas e do saber fazer a pescaria nas muruadas do Rio Araí, enquanto práticas de sociabilidades e comensalidades, que sustentam um jeito próprio de pescar e viver dos caboclos pescadores do nordeste paraense, em geral e particularmente dos de Araí, que “falam” as imagens (SAMAIN, 2012, 2005) deste ensaio etnofotográfico.
Referências
INGOLD, Tim. 2012. Trazendo as coisas de volta à vida: Emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 19, n. 37, p. 25-34.
PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pelas trajetórias da mandioca, no e além do nordeste paraense. Belém: Paka-Tatu, 2018.
SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Hucitec/senac, 2005.
Conheça mais
Miguel Picanço: Doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA- UNIVERSIDAD DE BARCELONA). Pós- Doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo. ODELA/ Universidad de Barcelona.