Farinha de Bragança é crocante e intensa. E quer indicação geográfica. Ela é torrada à mão segundo tradição passada de pai para filho, em comunidades no Pará.
(PERALVA, 2017, p. 1)
O excerto acima foi manchete do Jornal Estadão e diz respeito a uma prática muito conhecida na região bragantina e, quiçá, por todo o Estado do Pará, um costume que remonta a tempos imemoriais, herdado dos índios tupinambás e que na atualidade coloca a cidade e a região bragantina entre os maiores polos produtivos de farinha do estado. Porém, a matéria supracitada não se refere especificamente à quantidade, mas sim à qualidade que é peculiar à farinha produzida na região bragantina, o que a torna única. Essa unicidade atribuída à farinha de Bragança tem fomentado uma agenda que reivindicou o selo de Indicação Geográfica (IG) da farinha d’água de Bragança, particularmente da farinha lavada.
Importa saber, que a Indicação Geográfica é um instrumento de proteção que se diferencia dos demais, por estar envolto em práticas e coisas coletivizadas e compõem
[…] o Sistema de Propriedade Industrial, que, no Brasil, é regulado pela Lei 9.279/96, é um conjunto de mecanismos voltados à proteção de produtos industriais, estando, entre eles, as patentes, as marcas e os desenhos industriais. No Brasil, a Indicação Geográfica tem duas modalidades: “Indicação de Procedência”, quando existe uma notoriedade e um reconhecimento da qualidade dos produtos desenvolvidos no lugar de origem; ou “Denominação de Origem”, quando o produto carrega consigo as características do lugar, seja por conta das propriedades do solo, seja por conta do clima, garantindo-lhe um diferencial por aspectos próprios da região. A Indicação Geográfica de determinado produto, após o registro no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, constitui-se em um selo utilizado por todos os produtores instalados na área delimitada, os quais respeitam as regras de uso. Um selo é colocado no rótulo do produto e não interfere na marca que distingue os produtores.
(RODRIGUES, 2016, p.1)
As reivindicações dos produtores da referida farinha em favor da certificação da IG se iniciaram desde o ano de 2013 e decorrem da necessidade de protegê-la, salvaguardá-la e reconhecer a origem e a qualidade que, historicamente, vem sido atribuída a ela, assegurando-a o título de melhor farinha do estado do Pará, por possuir qualidades singulares: crocância, (torrada) cor (amarela) e granulação (baguda), que estão diretamente relacionados à maneira como os bragantinos fazem suas farinhas:
Depois que a gente tira a mandioca da água agente amassa ela na mão ou no catitu, depois esprememos a massa no tipiti e depois colocamos no forno para torrar por mais ou menos uma hora. Depois disso, a farinha fica pronta para comer. Pra ela ficar crocante e grossa, vai depender de saber mexer a farinha na hora do escaldamento e depois, até ela ficar boa pra comer. A cor amarela depende do tipo de mandioca e do tempo que ela ficou plantada na roça. Na verdade, pra ela ficar torradinha, amarela e graúda, vai depender de quem faz, de quem sabe fazer.
(Fala de dona Helena Paiva –mandicultora de Araí, na região bragantina – em entrevista concedida em março de 2017).
Toda essa história em relação à qualidade e singularidade vinculadas à farinha bragantina remonta ao início do século XX e se confunde com a construção e funcionamento da estrada de ferro – desativada em 1965 – que, na época, interligou não apenas a cidade de Bragança, mas praticamente todo o nordeste paraense à capital Belém, que passou a ser um dos principais polos de escoamento da produção da farinha bragantina, a qual desde então “caiu” no gosto dos paraenses, alcançando, nos últimos anos, outros lugares e outros paladares para além do nordeste paraense, fazendo-se presente nas mesas e nos gostos de chefes e proprietários de restaurantes renomados em outros estados do Brasil
Ademais, importa aqui dizer também que as experiências vividas pelos bragantinos com a farinha de Bragança conferem-lhes certo orgulho de ser de um lugar onde, segundo eles, tem-se a melhor farinha do estado e, provavelmente, do mundo. Esse sentimento de pertencimento desencadeou toda uma agenda em favor do processo de proteção e Indicação Geográfica da farinha de Bragança.
Isso posto, torna-se importante informar aqui que a reivindicação dos produtores de farinha de Bragança foi atendida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) que, em maio de 2021, concedeu o registro de reconhecimento de Indicação Geográfica da farinha d’água lavada, na modalidade Indicação de Procedência.
Mas, afinal, quais as implicações desse feito para a cadeia produtiva da farinha em questão? Antes de tentar responder a essa indagação, é preciso frisar que a Indicação Geográfica se propõe a atender não apenas o território bragantino atual, mas todos os municípios que aprenderam e implementam as técnicas do saber fazer a farinha d’água lavada, tais como: Viseu, Tracuateua, Augusto Corrêa e Santa Luzia do Pará, pois todos esses municípios desenvolvem as técnicas próprias de feitura da farinha d’água lavada.
Assim, pode-se considerar que a concessão da IG implicará em inúmeros benefícios à cadeia produtiva da farinha d’água lavada, principalmente do ponto de vista mercadológico, pois valores serão agregados não apenas ao produto, mas também aos produtores de farinha de Bragança, de modo a projetar e garantir reconhecimento no mercado nacional e quiçá internacional. Além disso, existe a possibilidade do fomento de uma cadeia produtiva transversal, a saber, uma rota turística da mandioca e da feitura da farinha d’água, conforme reconhece Karine Sarraf, membro do Conselho Regulador da IG da farinha de Bragança e Coordenadora do Fórum Técnico de Indicações Geográficas e Marcas Coletivas do Pará.
Afora isso, não seria descabido reconhecer que a concessão da referida IG implica também em tensionamentos, movimentos e processos de descontinuidades e apagamentos de práticas e experiências herdadas dos povos originários da Amazônia paraense que, historicamente, forjaram os modos de saber fazer a farinha d’água de Bragança e dos demais municípios que compõem o território da IG.
As tensões a que me refiro são provocadas pelas exigências de adequações técnicas e sanitárias do processo produtivo da farinha, defendidas por agentes do Estado, que, por meio das instituições de regulações técnica e sanitárias exigem dos produtores mudanças significativas nos modos de saber fazer a referida farinha, particularmente, a farinha lavada. Tais exigências estão postas no Caderno de Especificações Técnicas, que é o documento que orienta a concessão do uso do selo e que prima pela produção de uma farinha supostamente limpa e segura.
Assim, segundo Sarraf, para a concessão da IG, o produtor precisa ser agricultor familiar, produzir em um dos cinco municípios alcançados pelo selo e ser fazedor de farinha d’água lavada. Além dessas exigências, os produtores terão que se desfazer de práticas e técnicas da feitura da farinha d’água que, até então, têm marcado e forjado o reconhecimento, a qualidade e a fama de melhor farinha do Pará, do Brasil e, provavelmente, do mundo. Ou seja, para receber a certificação da IG, o mandiocultor terá que abdicar da sua casa do forno tradicional, aquela de chão batido e coberta de palhas, pois estudos empreendidos pelo Conselho Regulador apontaram presença de areia nas farinhas produzidas nessas casas tradicionais, conforme relato de Sarraf “A gente colheu 10 amostras de produtos para fazer as análises fiscais e nessas amostras agente viu […] a presença de areia na farinha. Essa presença demonstra que o produto não é limpo, apesar de ser gostoso. Então, é preciso adequar o processo produtivo.”
Além da adequação na casa do forno, que deve ser construída em alvenaria, com o teto coberto por telhas e com paredes que impeçam o acesso de animais, os produtores não poderão fazer uso do “pução” (pução é nome dado pelos mandiocultores de Araí ao igarapé, no qual, a mandioca fica de molho) para o processo de fermentação e pubação da mandioca, nem tampouco fazer uso do tipiti para a retirada do tucupi da massa da mandioca.
Sarraf pontua ainda que todas essas mudanças são necessárias, porque esses modos tradicionais de fazer a farinha interferem na qualidade, geram resíduos, contaminação, não promovendo um produto limpo. Tais exigências tornam-se necessárias, caso contrário não há como conceder o selo, porque o produto nas condições citadas torna-se impossibilitado de circular nos mercados.
Como já mencionado anteriormente, quase todos os produtores (com raríssimas exceções, pois dentre aqueles contemplados pela IG, no território bragantino, existe um mandicultor que mecanizou a feitura da farinha, inclusive a torra, conforme mostrado no vídeo) fazem suas farinhas de maneira artesanal. Sendo assim, os recursos utilizados para essa feitura advêm, quase que em sua totalidade, da força do trabalho humano, tornando-se imprescindível o contato direto das mãos dos produtores com a mandioca, com a massa e com a farinha.
Esses movimentos, técnicas e relações sociais que são próprios do saber fazer a farinha d’água podem ser observados no vídeo que segue. Importa saber que o referido vídeo resulta de minhas incursões etnográficas, empreendidas durante o mês de julho de 2021, nas quais observei e registrei o processo de feitura da farinha d’água de seu Benedito, que é mandicultor da comunidade de Araí, em Augusto Corrêa.
Isso posto, torna-se importante dizer que os produtores de farinha de Bragança têm resistido a essas imposições. Argumentam que o modo como sabem fazer farinha advém dos ensinamentos de seus antepassados e que por isso não lhes agrada a ideia de mudar. Segundo Paz (1995 apud PERALTA, 2016, p. 1711), essa resistência ocorre porque
O artesão […] não é fiel a uma ideia, nem mesmo a uma imagem, mas a uma disciplina prática: seu trabalho. Sua oficina é um microcosmo social governado por suas próprias leis especiais. Seu dia de trabalho não é ditado rigidamente por um relógio de ponto, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e sua sensibilidade do que com as necessidades abstratas de produção.
Assim, os discursos que fundamentam e defendem a importância da IG como política pública de proteção patrimonial parecem ser paradoxais, porque, ao mesmo tempo que defendem a IG como políticas públicas voltadas para a proteção e preservação de coisas, saberes e fazeres de um dado lugar, impõem sobre os sujeitos a necessidade de mudar alguns aspectos dessas práticas que, em alguns casos, acabam por ser transformar em outras coisas, saberes e fazeres.
Nesse sentido, Peralta (2016) aponta que esse conflito entre o saber fazer tradicional e as exigências para aquisição da IG decorre, dentre outras coisas, do fato de que “a demanda pela IG nasce muito mais das instituições externas aos agentes produtores do que por meio do interesse dos próprios” (p. 1711), o que resulta em tensionamentos: de um lado, o artesão, que se nega a mudar seu jeito de saber fazer; do outro lado, os agentes exógenos tentando padronizar esse saber fazer. Peralta (2016) pontua ainda que esses agentes externos precisam considerar que as coisas feitas artesanalmente diferenciam-se substancialmente de
[…] um produto de massa, homogêneo e pasteurizado. Seu ritmo de produção é diferente; as formas resultantes possuem peculiaridades por mais que se trate de um mesmo objeto entre outras especificidades. Falar de padronização é simplesmente ferir toda a lógica de produção e desenvolvimento do artesanato.
(p. 1712).
Por fim, ao mesmo tempo que reconheço a importância da IG da farinha d’água lavada de Bragança, também defendo a ideia de uma IG que, ao reconhecer a origem e a qualidade, de fato, proteja e salvaguarde não apenas o produto, a farinha em si, mas todas as relações sociais, cosmológicas e simbólicas que estão emaranhadas nas técnicas, nos utensílios e em todas as coisas que compõem o mundo-vida da mandioca, sem as quais o saber fazer a farinha d’água e lavada de Bragança não existiria.
Falo, por exemplo, do pução que, além de ser o lugar onde a mandioca fica de molho por 4 ou 5 dias, tempo necessário para a sua fermentação e pubação, constitui-se também no lugar que ativa as cosmologias e crenças dos produtores que acreditam, por exemplo, que tomar banho no pução às sextas-feiras cura a panema e lhes traz sorte. Além do que, vetar a técnica do amolecimento da mandioca no pução implica em mudança no sabor da farinha.
Também me refiro ao tipiti, que é um dos utensílios mais simbólicos e emblemáticos do saber fazer a farinha de Bragança.Isso sem esquecer da casa do forno tradicional, que é compreendida como uma instituição socioalimentar tão relevante para o processo produtivo da farinha quanto a roça, a mandioca, o pução, as pessoas e a farinha. Ela é, principalmente, um lugar de trocas de experiências, onde o saber fazer as comidas oriundas da mandioca é ensinado, aprendido e mantido de geração em geração. A casa do forno é um espaço fulcral para a história da mandioca e dos territórios da Amazônia paraense, pois, ao mesmo tempo em que se constitui no lugar onde são feitos não apenas a farinha, mas todos os demais derivados da mandioca.Ela também se revela um espaço de interações sociais, sociabilidades e comensalidades que, historicamente, marcam e forjam os modos de viver e pertencer aos territórios amazônico, paraense e caboclo.
Por isso, levanto aqui a bandeira de uma IG menos colonizadora e mais decolonial.
Miguel Picanço: Doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA- UNIVERSIDAD DE BARCELONA). Pós- Doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo. ODELA/ Universidad de Barcelona.
Referências
PERALTA, Patrícia Pereira. Necessidade de políticas institucionais para a aplicação de indicações geográficas como instrumento de proteção e valorização do patrimônio cultural.In.Seminário Internacional de Políticas Culturais, 7, 2016. Salvador.Anais. Salvador: UFPB, 2017.Disponível em https://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2016/06/.
RODRIGUES, Hojo. Farinha de Bragança sem falsificações: Pesquisa analisa Projeto de Indicação Geográfica para produto tradicional. Jornal Beira Rio/UFPA, Belém, 2016. Disponível em: https://www.beiradorio.ufpa.br.