Os carregadores e a tradição de comer açaí em Belém em tempos de covid-19

O protagonismo do trabalho dos carregadores de açaí

No ano de 2015, a UNESCO outorgou a Belém o título internacional de Cidade Criativa da Gastronomia, conferindo à capital paraense a condição de cidade brasileira referência mundial em gastronomia e integrando-a a uma rede de cidades que buscam desenvolvimento de maneira sustentável e de modo socialmente justo.

Essa qualidade gastronômica atribuída a Belém tem se destacado no cenário nacional brasileiro e tem agradado os gostos além-mar.Isso foi o que constatou o Ministério do Turismo quando, no ano de 2016, buscou saber qual a capital brasileira teria a preferência, em termos gastronômicos, dos turistas estrangeiros. De acordo com o estudo, enquanto a gastronomia brasileira recebeu nota máxima (muito bom e bom) de 95,4% dos visitantes internacionais, a de Belém chegou ao topo, com 99,2% de aprovação. Os cheiros e sabores da fauna e da flora da Amazônia: açaí, camarão, caranguejo, peixes; além de ervas, como o jambu; pimentas, e a famosa farinha de mandioca “encantaram” turistas da França, principal emissora de turistas para Belém em 2016, com 34% do total de visitantes, e também do Suriname, Estados Unidos, Holanda, Argentina, Alemanha, entre outros.

Foto: Miguel Picanço

Isso posto, convém aqui frisar que, em relação à diversidade que compõe os gostos e os sabores do repertório alimentar de Belém, o açaí ocupa fulcralidade e é reconhecido pelos paraenses ora como fruta, ora como fruto. De um modo ou de outro, ele ou ela está entre as mais importantes comidas paraenses. Em Belém, por exemplo, constitui-se em alimento diário, é o prato principal da mesa daquela gente, degustado sempre com farinha de mandioca, com farinha de tapioca, com camarão, peixe assado ou com farofa de charque, com ou sem açúcar. 

Sua importância é tamanha que, além de nutrir o corpo, o açaí alimenta também a inspiração dos artistas locais, assim como fizeram o compositor João Gomes e o compositor e cantor paraense Nilson Chaves, cuja fama também se deve à canção “Sabor Açaí”, na qual os artistas, poeticamente, descrevem não apenas os modos de comer o açaí, que são próprios dos paraenses, mas também as representações e os simbolismos que se constituem na relação estabelecida entre os paraenses e o fruto:

E prá que tu foi plantado
E prá que tu foi plantada
Prá invadir a nossa mesa
E abastar a nossa casa…

Teu destino foi traçado
Pelas mãos da mãe do mato
Mãos prendadas de uma deusa
Mãos de toque abençoado…

És a planta que alimenta
A paixão do nosso povo
Macho fêmea das touceiras
Onde Oxossi faz seu posto…

A mais magra das palmeiras
Mas mulher do sangue grosso
E homem do sangue vasto
Tu te entrega até o caroço…

E tua fruta vai rolando
Para os nossos alguidares
Tu te entregas ao sacrifício
Fruta santa, fruta mártir
Tens o dom de seres muito
Onde muitos não têm nada
Uns te chamam açaizeiro
Outros te chamam juçara…

Põe tapioca
Põe farinha d’água
Põe açúcar
Não põe nada
Ou me bebe como um suco
Que eu sou muito mais que um fruto
Sou sabor marajoara
Sou sabor marajoara
Sou sabor

por João Gomes e Nilson Chaves

Afora isso, torna-se importante saber que o Pará produz mais de 1.273.000(um milhão, duzentos e setenta e três mil) toneladas de açaí por ano, em uma área superior a 219 mil hectares, constituindo-se no maior produtor do fruto no Brasil. Ainda segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 60% dessa produção é consumida pelos paraenses, 30% vai para outros estados e 10% para o mercado internacional. Quase toda a produção do fruto, que é chamado pelos paraenses também de “ouro negro”, é comercializada todas as noites na Feira do Açaí, situada no complexo do Mercado Ver-o-Peso, no centro de Belém. 

As atividades da feira iniciam a partir da meia-noite, quando os barcos vindos das mais variadas regiões do estado e carregados de rasas de açaí (as rasas são paneiros que funcionam como unidade de medida para a comercialização do açaí, geralmente cada uma delas comporta 28kg) aportam às margens da Baía do Guajará e, a partir de então, as rasas começam a ser desembarcadas e negociadas na feira.

A relevância do açaí para os paraenses, em especial para os belenenses, é tanta que, durante a pandemia do COVID-19, seu consumo foi legalmente assegurado, isso porque a prefeitura de Belém, por meio do decreto N.º 96.190/2020, que foi publicado no Diário Oficial do Município no dia 27 de abril e instituía quais atividades, serviços e estabelecimentos deveriam funcionar, ou não, reconheceu a comercialização do fruto como serviço essencial. Esse feito garantiu a continuidade da tradição de comer açaí, assegurando sua condição de patrimônio alimentar de Belém mesmo em tempos de proibições e limitações da vida impostas pela pandemia.

O supracitado decreto dedicou um inciso que versava sobre os procedimentos a serem adotados pelos proprietários dos pontos de venda de açaí, que são comumente encontrados por todos os bairros de Belém. O texto garante a comercialização, desde que seja nos sistemas delivery e takeaway, isto é, ou se entrega em domicílio ou o cliente encomenda e retira no estabelecimento, conforme pode ser conferido no inciso nove do já citado Decreto municipal, que diz que ” Os pontos de venda de açaí deverão funcionar no sistema pegue e leve (takeaway) ou em sistema de entrega a domicílio (delivery).” 

Torna-se importante saber que o referido Decreto foi outorgado no momento em que Belém constituía-se no epicentro da COVID-19 em termos paraenses, onde se concentravam 60% das mortes provocadas pela doença. Na ocasião, segundo dados da Secretaria de Saúde do Pará (SESPA), o referido estado registrava 2.319 (dois mil, trezentos e dezenove) casos positivados para a COVID-19 com 132 (cento e trinta e dois) óbitos. Nesse contexto, a capital paraense registrava 1.344 (um mil, trezentos e quarenta e quatro) casos confirmados com 72 (setenta e duas) vítimas letais do novo Coronavírus. Cabe salientar que até hoje, dia 9 de junho de 2020, dia em que este ensaio foi finalizado, o estado do Pará contava com 57.570 (cinquenta e sete mil, quinhentos e setenta) casos positivados e 3.835 (três mil, oitocentos e trinta e cinco) óbitos, enquanto que Belém chegava à marca de 14.879 (quatorze mil, oitocentos e setenta e nove) infectados e 1.631 (um mil, seiscentos e trinta e um) mortos pelo referido vírus.

Nesse cenário, Belém, assim como praticamente toda a humanidade, encontra-se marcada por incertezas que foram instauradas desde o primeiro momento em que a pandemia se tornou conhecida, exigindo de todos, além do isolamento físico e social, mudanças profundas e imediatas em quase todas as dimensões da vida, inclusive naquelas referentes à comida.

Foto: Miguel Picanço

Estamos ante una adaptación de la vida cotidiana, donde nuestras necesidades básicas, como comer, se han visto modificadas, obligándonos a construir una “nueva normalidad” frente a um escenario lleno de incertidumbre, que impacta de múltiples formas, El comportamiento alimentario (GÓMEZ-REYES, ORTIZ, 2020, p. 1).

É nesse contexto que situo aqui o protagonismo de alguns atores sociais belenenses, que, mesmo diante das incertezas advindas da pandemia, contribuem significativamente para que o hábito de comer açaí pudesse ser mantido em Belém e sua região metropolitana em tempos, reconhecidamente difíceis, de COVID-19. Refiro-me aos trabalhadores carregadores de açaí, cuja importância se revela nas funções laborais que desempenham todas as noites, na feira do açaí, onde, da meia-noite até o raiar do sol, eles transportam o fruto, ora dos barcos para os vendedores da referida feira, que fica às margens da Baía do Guajará, ora destes para os donos dos pontos de venda do fruto, que se encontram distribuídos por todo o território da capital paraense.

Sendo assim, entende-se aqui que, provavelmente, sem o trabalho dos carregadores, a tradição de comer açaí estaria comprometida. Assim, eles, ainda que expostos ao perigo da contaminação do novo vírus, têm garantido, de certo modo, a soberania alimentar na capital paraense, ou seja, o direito dos belenenses de continuar comendo açaí, ainda que diante de um cenário de proibições, limitações e mudanças. Portanto, é sobre o protagonismo do trabalho dos carregadores de açaí, no contexto da feira do açaí, em tempos de COVID-19, que “falam” e nos convidam a pensar (SAMAIN, 2012) as imagens que seguem.

Por fim, faz-se necessário pontuar que as imagens deste ensaio, ao mesmo tempo que “falam” da importância dos carregadores para manutenção das práticas alimentares de Belém, especialmente daquelas relacionadas ao açaí, também revelam as condições insalubres e precárias as quais esses trabalhadores são diariamente submetidos.

Essas condições podem ser notadas, por exemplo, no mau uso das máscaras ou até mesmo na ausência delas, conforme mostram algumas das imagens acima. Como é sabido, o uso adequado das máscaras torna-se condição imprescindível para o enfretamento da pandemia e os carregadores certamente são sabedores disso. Porém, conforme relato de alguns deles, o uso constante das máscaras enquanto trabalham constitui-se em tarefa praticamente impossível, pois com regularidade, no sobe e desce dos paneiros e dos sacos, assim como por conta do suor constante provocado pelo esforço físico exigido para locomover os carrinhos, as máscaras são retiradas de seus rostos independente de suas vontades, o que os tornam ainda mais vulneráveis ao vírus.

Afora isso, não se pode esquecer que esses carregadores compõem a geografia do trabalho informal e que, conforme apontado pelo IBGE, eles somam-se aos mais de um milhão e duzentos mil trabalhadores paraenses que, por não terem outras possibilidades e movidos pela necessidade de sobreviver, submetem-se às condições precárias e às mazelas que são próprias do trabalho informal.

REFERÊNCIAS

GÓMEZ-REYES, Elisa. ORTIZ, Valeria. COVID-19 impactará en la forma de comer y mirar los alimentos. 2020. Disponível em: https://www.linkedin.com/content guest/article/covid-19-impactar%C3%A1.Acesso em 2 de junho de 2020.

MTur – MINISTÉRIO DO TURISMO. Gastronomia paraense é a mais bem avaliada do país. Brasília, 2017. Disponível em: www.turismo.gov.br. Acesso em 15 abril de 2020.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTÁTISTICA. Produção da Extração vegetal e da Silvicultura. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/289. Acesso em 30 de maio de 2020..

PMB – PREFEITURA MUNICIPAL DE BELÉM. Decreto 96.190/2020 de 27 /04/2020. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=393690. Acesso em 18 de maio de 2020.

SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

SESPA – SECRETÁRIA DE SAÚDE DO ESTADO DO PARÁ. Coronavírus no Pará. 2020. Disponível em:https://www.covid-19.pa.gov.br/#/. Acesso em 5 de maio de 2020.


Miguel Picanço: Doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA- UNIVERSIDAD DE BARCELONA). Pós- Doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo. ODELA/ Universidad de Barcelona.

” A vida é um nascimento contínuo ” ( Iscott).

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