Sua majestade é historicamente reconhecida, atribuindo-lhe o tributo de a mais importante herança alimentar herdada pela humanidade pelo antigo povo neotrópico, constituindo-se em comida ancestral.
Sabias que 22 de abril é comemorado o dia Nacional da Mandioca? Isso mesmo, um dia escolhido para homenagear a Rainha do Brasil e, quiçá, a Rainha do Pará. Sua majestade é historicamente reconhecida, atribuindo-lhe o tributo de a mais importante herança alimentar herdada pela humanidade pelo antigo povo neotrópico (RIBEIRO, 2013), constituindo-se em comida ancestral, a qual, ao mobilizar sentimento de pertencimento, funciona como linguagem de identidade da gente que povoa essas bandas do Norte brasileiro e quiçá das demais regiões do Brasil. Isso porque no decorrer da história da sociedade brasileira, a mandioca aparece como um recurso decisivo na formação, sustentação e continuação daquilo que hoje é o povo brasileiro. Essas constatações estão publicizadas em obras de autores como Marcena (2012), Cascudo (2011), Freyre (2005), Silva (2005) e DaMatta (1986).
As proposições apontadas pelos escritos dos autores supracitados, além de permitirem compreender que, no decorrer da história nacional brasileira, a mandioca desempenhou papel imprescindível, contribuindo para desenhar o protótipo daquilo que hoje é a nossa cozinha, também fazem notar as implicações dessa cozinha na constituição sociocultural de nossa sociedade, em especial do povo nordestino e nortista. Sendo assim, “[…] talvez não seja exagero afirmar que foi por causa da mandioca que o Brasil se construiu.” (MACÊDO, 2016, p. 218).
As afirmativas e descrições que atribuem à mandioca papel importante no processo de formação da sociedade brasileira fundamentam-se em estudos arqueológicos, mas também em registros de cronistas datados do século XV, por exemplo, os relatos de Pero Vaz de Caminha que, ao escrever ao rei de Portugal, Dom Manuel, contou-lhe sobre os hábitos alimentares dos nativos, com notabilidade para a mandioca, que fora chamada pelo cronista de inhame (MARCENA, 2012). Do mesmo modo, Freyre (2005), ao apropriar-se dos escritos de Gabriel Soares, fornece importantes informações referentes às práticas alimentares dos habitantes do Novo Mundo. Nesses relatos, o cronista, além de destacar a proeminência da mandioca como fonte de alimento, também descreve o modo como os nativos produziam seus alimentos, com notoriedade para a farinha de mandioca.
Marcena (2012) assevera que, nos primórdios da colonização brasileira, “[…] a mandioca era vista pelos colonizadores como uma espécie de trigo do Novo Mundo que nutria o indígena sul-americano há séculos, através da farinha e de beijus que, posteriormente encantaram alguns paladares europeus” (MARCENA, 2012, p. 44) e auferiram a preferência dos colonos que gradativamente os consumiam ao invés do pão de trigo. “[…] Embora o beiju fosse muito apreciado, foi a farinha que se estabeleceu como o pão do Brasil.” (SILVA, 2005, p. 85). A adesão de colonizadores e colonos aos hábitos alimentares dos nativos denota um marco na história do Brasil em geral e na história da alimentação brasileira em particular. Esse fato confirma a supremacia da mandioca no projeto colonizador, pois “Foi completa a vitória do complexo indígena da mandioca sobre o trigo: tornou-se a base do regime alimentar do colonizador […]” (FREYRE, 2005, p. 191).
Assim, as proposições dos autores apontam para a mandioca como um recurso que potencializou a colonização brasileira mediante três processos: primeiro, foi graças ao cultivo da mandioca que os nativos puderam migrar de suas condições nômades para determinadas áreas geográficas fixas, o que, de certo modo, contribuiu para o domínio estrangeiro sobre eles; segundo, a mandioca passa a agradar o paladar dos estrangeiros, principalmente os de menor poder aquisitivo; e, finalmente, a farinha de mandioca serviu de base alimentar para as tropas colonizadoras, ao mesmo tempo em que alimentava a mão de obra escrava oriunda do continente africano (MARCENA, 2012). Marcena (2012) e Cascudo (2011) observam que foi com o advento da farinha que a mandioca definitivamente se firmou como alimento basilar no processo de colonização. “A farinha indispensável era a explicação única. Comida para todos, portugueses e mazombos, a indiada fiel, fosse qual fosse o nível social participante” (CASCUDO, 2011, p. 95).
A farinha de mandioca configurou-se, portanto, o alimento principal daqueles que chegavam ao Novo Mundo, materializando-se no “[…] primeiro conduto alimentar brasileiro pela extensão e como continuidade nacional” (CASCUDO, 2011, p. 96). Tal era sua importância que, em Portugal, ela tornou-se moeda de troca e foi amplamente utilizada especialmente em tempos de escassez. (CASCUDO, 2011).
Sobre a mandioca pairava tamanho prestígio que a primeira Constituição brasileira, a de 1824, ficou conhecida como Constituição da mandioca. Nesse período, o direito ao voto tornou-se privilégio apenas para “[…] aqueles que tinham renda medida por bens de raiz, indústria, comércio, sendo raiz a mandioca.” (BONI, 2016, p. 1).
Outrossim, pode-se inferir que a mandioca, com considerável notabilidade para a farinha, foi elemento decisivo, dispositivo que, a priori, potencializou o domínio dos europeus sobre o território brasileiro, mas, além disso, por quase quatro séculos, ela encontrava-se no epicentro da alimentação, assim como da economia de quase todas as regiões do país. No século XIX, sua utilização tornou-se conspícua de norte a sul do território brasileiro, pois seu cultivo “[…] estava disseminado por todo o território brasileiro, inclusive nas regiões localizadas mais ao sul e a sudeste, principalmente no interior, área historicamente definida como de domínio da cultura do milho […]” (SILVA; MURRIETA, 2014, p.41). “Na geografia da alimentação brasileira o “complexo” da mandioca […] constitui uma permanente […] em todas as direções demográficas […].” (CASCUDO, 2011, p. 101).
Por considerar a mandioca o alimento que mais representa a cozinha brasileira, Cascudo atribui a ela o epíteto de “Rainha do Brasil”. Para o autor, nenhum outro alimento é mais “legítimo” e mais popular entre os brasileiros, em especial “[…] para o brasileiro do povo comer sem farinha não é comer” (CASCUDO, 2011, p. 101), principalmente no século XIX, tempo em que ela tornou-se, definitivamente, o mais fulcral dos produtos alimentares do país, alimentando não apenas a mesa, mas também a economia do Brasil; porém, foi também nesse mesmo século que ela perdeu sua centralidade. Foi “a partir de 1820, quando as plantações de subsistência deram lugar às áreas de cultivo de produtos de exportação […]” (SILVA; MURRIETA, 2014, p.50), que a mandioca iniciou seu processo de decadência, tendo sido substituída por outros gêneros alimentícios, como o milho, o café e, posteriormente, pela cana-de-açúcar.
As transformações iniciadas no século XIX potencializaram-se na primeira metade do século subsequente, quando o Estado brasileiro foi tomado por discursos em prol da modernização da agricultura camponesa. Foi então, em nome da modernidade, que ascendeu no Brasil um novo modelo socioeconômico, baseado na industrialização e na urbanização, mediante medidas como a “[…] venda de terras consideradas devolutas, o incentivo do Estado à expansão da monocultura do café e ao deslocamento da mão de obra do campo para abastecer o mercado urbano. (FERRARO, 2005, apud SILVA; MURRIETA, 2014. p. 51). Entre as décadas de 20 e 30 do Século XX, o café foi gradativamente substituído pela cana-de açúcar, que passou a ser “[…] o alicerce do futuro programa de produção de etanol, que revolucionaria a indústria automobilística do país.” (SILVA; MURRIETA, 2014, p.52).
Daí por diante, o governo brasileiro engajou-se na implementação de um modelo agroindustrial baseado na chamada “Revolução Verde”, cuja ênfase estava “[…] na produtividade e intervenção tecnológica por meio de pacotes técnicos e administrativos […].” (SILVA; MURRIETA, 2014, p.52), com centralidade para a produção de gêneros alimentícios de elevado valor econômico, dos quais a mandioca não fazia parte.
Na contramão dos dados históricos, que situam a mandioca e sua farinha em um processo de descontinuidade nacional, afirma-se que, passados “[…] quase cinco séculos, a farinha continua mantendo o prestígio no crédito popular […] sem ela a refeição estará incompleta e falha […].” (CASCUDO, 2011, p. 92), ao menos para os habitantes do estado do Pará onde, assim como em outrora, hoje ela ainda reina absoluta como o principal alimento que nutre e alimenta não apenas o povo, mas também a economia daquele estado.
No estado do Pará, existem várias farinhas de mandioca, dentre as quais uma ocupa a centralidade, a saber, a farinha d’água, que é alimento diário presente em quase todas as refeições, em especial quando essas refeições são regadas ao sabor do açaí (Euterpe oleracea).
A farinha d’água é “ingrediente obrigatório da culinária local, […] os paraenses dizem que […] vai bem com café, açaí, peixe, moqueca, mingau e até sorvete […].” (SAMPAIO, 2017, P. 1).
Importa aqui dizer que, no contexto paraense em geral, o cultivo da mandioca transcende a produção de farinha d’água e toma forma de outras farinhas, como farinha seca, farinha lavada, farinha para farofa, farinha de tapioca e farinha de carimã. Do conjunto dessas farinhas, os paraenses elegeram algumas para fazer um prato que é típico da região, a saber, o chibé, alimento singelo, cujos ingredientes necessários para sua feitura são apenas farinha e água que, depois de misturadas, dão forma ao chibé, que pode ser degustado com ou sem acompanhamento.
De todas as comidas derivadas da mandioca, o chibé parece funcionar como marcador e definidor da identidade paraense, pois, com regularidade, nesse estado, é comum o seguinte discurso, “eu sou paraense; sou papa chibé”, o que significa dizer que o indivíduo é um “autêntico” paraense, e, para homenagear – e talvez até confirmar essa identidade, associada a quem come com gosto o chibé. Desse modo, pode-se conceber o chibé como um prato que, de alguma maneira, unifica o povo paraense, funcionando como uma “carteira de identidade alimentar” (MACIEL, 2005) daqueles que habitam essas terras do Norte.
Outrossim, argumenta-se aqui que a farinha e, em particular, a mandioca podem ser pensadas como comidas emblemáticas, as quais, de alguma maneira, ajudam na definição da identidade coletiva do povo paraense, funcionando assim, nos termos de Contreras (2011), como pratos Totem, que são dotados de “[…] um valor simbólico muito peculiar, funcionando como uma chave da identidade cultural, indicadores da diferença. Esses pratos recriam uma identidade, e as reuniões para degustá-los em grupo recriam uma comunidade […]” (CONTRERAS, 2011, p. 142), performando, portanto, como textos que narram a história de constituição de um grupo, sua contextualização presente, traduzindo simultaneamente o código de valores que orientam a prática social. Por sua contribuição ao processo de singularização cultural, as comidas Totens participam da própria representação que o grupo faz de si, da constituição de sua identidade. (DUTRA, 2004, p. 107).
Com base nos apontamentos históricos e da antropologia da alimentação, postula-se que, em termos econômicos, a mandioca pode até não ter mais retomado o posto de principal produto alimentício do Brasil, mas, mesmo assim, ela continua sendo parte fundamental da alimentação nacional, “[…] continua inabalável em seu trono.” (CASCUDO, 2011, p. 101), pois, ainda hoje, como farinha, ela é “[…] o cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas dos brasileiros” (DAMATTA, 1986, p. 63), ela é “o ingrediente” que está presente de norte a sul do Brasil, em especial no Estado do Pará, onde ela povoa e alimenta a economia do lugar, assim como a identidade coletiva daquele povo que elegeu a farinha, em particular a farinha d’água como ícone de sua cozinha, mas também come a maniçoba, o tacacá , a tapioca, o beiju, o chibé, o tucupi, a maniva, dentre outros pratos e derivados que compõem o “complexo da mandioca” nos territórios amazônidas e paraenses.
Findo, este texto reconhecendo a mandioca e seus derivados como comidas ancestrais. Como asseverou Berta Ribeiro, (2013), a mandioca é a herança alimentar mais importante herdada dos povos originários pela humanidade, especialmente pelos povos amazônidas. Em nossas mesas (dos paraenses) a presença indígena se manifesta cotidianamente, seja como farinha, seja como tucupi, seja como maniçoba ou mesmo como tapioca, etc. Viva a mandioca, a rainha que historicamente alimenta o povo amazônida e paraense.
Referências
BONI, Ana Paula. Os descendentes da mandioca. Infográficos estadão. 2016. p. 1.
CASCUDO, L. da C.História da Alimentação no Brasil. 4a. Ed. São Paulo: Global, 2011.
DUTRA, Rogéria Campos de Almeida. Nação, Região, Cidadania: A Construção das Cozinhas Regionais no Projeto Nacional Brasileiro. Revista Campos, de Antropologia Social, n.1, Paraná, 2004, p. 93-110.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 50ª edição. Global Editora, 2005, p. 156-232.
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. A cozinha mestiça: história da alimentação em Belém. 2016. Tese (doutorado em História social da Amazônia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2016.
MACIEL, Maria Eunice. Olhares antropológicos sobre a alimentação: Identidade cultural e alimentação. In: CANESQUI, AM., and GARCIA, RWD., orgs. Antropologia e nutrição: um diálogo possível [online]. FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2005, p. 48-5.
MARCENA, Adriano. Mexendo o Pirão: Importância Sociocultural da Farinha de Mandioca no Brasil Holandês (1635 a 1646). 1ª Ed. Recife: Funcultura, 2012, p. 8-145.
SAMPAIO, Vanessa. Bragança (Pa) festeja a gastronomia no São João. Ministério do Turismo. Brasília, 2017, p. 1.
SILVA, Henrique Ataide da; MURRIETA, Rui Sérgio Sereni. Mandioca, a rainha do Brasil? Ascensão e queda da Manihot esculenta no estado de São Paulo. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum, n. 1, Belém, 2014. P. 37-60.
SILVA, Paulo Pinto e. Farinha, feijão e carne seca: um tripé culinário no Brasil. 1ª Ed. São Paulo: SENAC, 2005, p. 21-142. SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Estudos históricos, n.33, Rio de Janeiro, 2004, p.159- 166.
RIBEIRO, Berta G. O Índio na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro (coleção biblioteca básica brasileira; 22), 2013.
Sobre o autor
Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).
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