A vida social do Camapu: histórias, memórias e afetos

O Camapu é um fruto de aparência delicada e caprichosa pela natureza, fica pendente envolto em um casulo de folhas que mudam de cor e textura conforme amadurece.

Dentre a pluriversidade de frutas silvestres que historicamente emaranham o território amazônico brasileiro, em particular a Amazônia paraense, o camapu – Physalis Angulata- ocupa lugar privilegiado, compondo as paisagens das territorialidades amazônicas. Para Susane Rabêlo, que é criadora do projeto Biodiversidade Comestível da Amazônia – BICA, a planta cresce espontaneamente em áreas antropizadas. 

É um fruto de aparência delicada e caprichosa pela natureza, fica pendente envolto em um casulo de folhas que mudam de cor e textura conforme amadurece. É de tom amarelo forte e é pequeno com três centímetros de diâmetro, em média. É um fruto da família das solanáceas. Seus frutos são comestíveis, com uma polpa macia, sabor adocicado e refrescante, podendo ser consumindo in natura.

Fonte: https://www.curapelanatureza.com.br/nova-superfruta-fortalece-prostata-combate-o-diabetes-e-previne-o-cancer/

Ainda segundo Rabêlo, os camapus são espécies comuns em áreas urbanas, ou pelo menos já foram. “Quem não recorda de comer camapu, também chamado por balãozinho ou Physalis enquanto brincava na rua? Isso, há uns 30 anos, quando eram conhecidas por frutas urbanas.”( Conversa via WhatsApp). Essa qualidade de fruta urbana atribuída por Rabêlo ao camapu pode ser reconhecida nas memórias de Robson Gomes, que é professor e vive em Belém. 

O professor é nativo da cidade de Macapá, lugar onde viveu quando criança, cujas memórias são encharcadas e marcadas por vivências com o camapu que, segundo ele, era uma fruta comum nos quintais macapaenses:

A gente ia, com os moleques, para tomar banho nos igarapés que tinham nos quintais, às vezes pra pescar e coletar frutas, como o camapu […] e a gente comia, não necessariamente por fome, mas por danação, mesmo. Lembro que o camapu era azedinho e a gente achava engraçado a forma como ele se desenvolvia. Aquela capa dele chama nossa atenção. Era uma planta que sempre tinha por perto, em abundância. (Conversa via WhatsApp).

Conforme observado nas falas de Rabêlo e Robson, em tempos de outrora, abundância e fartura constituíam-se em marcas do camapu, sua presença nas ruas, nos quintais das cidades como Belém e Macapá, por exemplo, era tão marcante quanto nos caminhos, nos quintais e nas roças de mandioca das comunidades rurais dos territórios amazônicos. Mas, parece que na atualidade essa presença abundante e citadina persiste apenas nas memórias e lembranças dos comensais, uma vez que o processo de urbanização das cidades e modernização das vidas amazônicas desfizeram e descontinuaram práticas e experiências cotidianas, como as sociabilidades e comensalidades mediadas pela cultura do colher e do comer, juntos, camapu. Esse processo tem invertido a cultura dessa planta: de uma fruta abundante e farta para um fruto escasso e em processo de desaparecimento, conforme apontado por Rabêlo:

A escassez do camapu é um “bioindicador” da devastação espacial e cultural na qual atravessamos. A devastação espacial se dá pelo intensificado aumento da urbanização e pulverização de agrotóxicos nas comunidades rurais contaminando toda a ordem de vida. E a devastação cultural implica pelo distanciamento da população a vida vegetal do lugar, que por sua vez promove a perda ou o enfraquecimento do valor simbólico do alimento (bioculturalidade). A ameaça de desaparecimento do camapu denuncia a urgente necessidade da conservação deste fruto como forma de salvaguardar, resguardar e relembrar a razão de mantê-las vivas.(Conversa via WhatsApp).

Fonte: Miguel Picanço

Mas, apesar do aparente afastamento do camapu da vida urbana, dados apontam para novos usos da fruta em diferentes esferas da sociedade atual, desde empreendimentos de pesquisas científicas, passando pela indústria alimentícia até as experiências na arte de cozinhar, para a qual, o camapu é 

Uma fruta da alta gastronomia que permeia as mesas mais sofisticadas montadas em hotéis, restaurantes e mercados especializados. Atualmente, seus frutos são muito cobiçados para ornamentar doces e até bebidas tornando-o de enorme potencial na confeitaria e coquetelaria pois além de belo é uma decoração natural e comestível. Na culinária o fruto pode ser utilizado em vários pratos, ou utilizados para a produção de molhos, geleias, licores, sorvetes e mousses. (Rabêlo, conversa via WhatsApp).

Em termos científicos, situo o camapu no âmbito do Grupo de Pesquisa Bioprospecção de Moléculas Ativas da Flora Amazônica/UFPA, no qual, sob as coordenações da Dra. Gilmara Bastos e do Dr. Milton Nascimento, tem se estudado as propriedades da planta para o tratamento de pessoas acometidas pelo Alzheimer.

Conforme apontado na matéria “Cura que sai da Floresta Amazônica para o mundo”, publicada no portal O liberal.com, esses empreendimentos científicos “[…] resultaram em neurogênese, atividade benéfica para potencializar a memória, melhorar a capacidade cognitiva, entre outros benefícios”. (Dra. Gilmara Bastos, em entrevista ao O Liberal.com). Asseverou a pesquisadora que “O paciente perde seus neurônios no hipocampo, e nossa pesquisa aponta que é justamente no hipocampo que nascem os novos neurônios estimulados pelo princípio ativo do Camapu”. (Dra. Gilmara Bastos, em entrevista ao O Liberal.com).

Reprodução: Internet

Dito isso, torna-se importante reconhecer aqui que a apropriação das propriedades do camapu para fins medicinais antecede aos estudos do Grupo de Pesquisa Bioprospecção, isto é, já faz algum anos que as propriedades curativas dessa planta foram descobertas pelos povos tradicionais da Amazônia brasileira, conforme me contou o professor Robson Gomes: “Eu também lembro que a minha vó, dona Antônia Gomes, fazia o chá do camapu. Não lembro pra que servia, se pra curar gripe, se pra fortalecer o sistema imunológico, mas eu sei que ela fazia aquela beberagem da folha do camapu”. (Conversa via WhatsApp).

Afora isso, importa dizer que a indústria alimentícia tem se apropriado dessa fruta, pois faz algum tempo que se tornou, de certo modo, comum encontrá-la entremeando as gôndolas dos supermercados dos centros urbanos, conforme relatos da professora Gilcélia:

Um dia desses eu estava no supermercado e na parte de hortifruti eu vi umas embalagens com a identificação Physalis, com um preço caríssimo e isso me trouxe memórias da minha relação com o camapu. Outro dia, conversando com uns amigos num grupo do Whatsapp, estávamos falando sobre nossas infâncias e novamente veio a história à tona. Eu falei que até o nome do camapu havia sido alterado para venderem com aquele valor absurdo (Conversa via WhatsApp).

Ainda, segundo Gilcélia – que apesar de viver na capital paraense, Belém, há alguns anos, é nativa da cidade de Moju, onde viveu até os 14 anos – sua infância foi emaranhada pela presença do camapu. “Nós éramos muito pobres e muitas vezes para enganar o estômago a gente ia atrás de frutas como manga […] e camapu […]”, que eram colhidos por ela em uma área da cidade, na qual havia um terreno vasto e propício ao nascimento da planta, que generosamente se alastrava naquele lugar, hoje um dos mais importantes bairros da cidade. Esse lugar era ordinariamente frequentado por Gilcélia em companhia de suas duas irmãs: “colhíamos os frutos, eu e minha duas irmãs mais velhas. Íamos com sacolas em busca do fruto, passávamos uma manhã apanhando e quando chegávamos em casa, comíamos com farinha e conseguíamos saciar por um tempo a fome.” (Conversa via WhatsApp).

Assim como Gilcélia, a infância da senhora Raquel Ribeiro, que hoje vive em Ananindeua, região metropolitana de Belém, também foi marcada pela presença do camapu. Ela me relatou que a fruta movimenta a sua memória e lhe faz lembrar de quando era criança e morava em Oeiras do Pará: “Nesse tempo, quando íamos andando de casa para escola, os pés de camapu que tinham no caminho, eram tantos, que pareciam matos. Eu amava ir colhendo e comendo.” (Conversa via WhatsApp).

Reprodução: Internet

O camapu também opera, de modo muito especial, às memórias afetivas da belenense Adriana Quadro, para quem o fruto aciona histórias e lembranças vividas em tempos de infância com a sua avó, dona Eufrásia Macedo. Segundo Adriana, dona Eufrásia residia em Belém, no bairro do Telégrafo, na rua Curuçá e sua casa era rodeada por um terreno que, de tão grande, comportava uma cacimba e muitas árvores frutíferas. Entremeando essas árvores e a cerca de estaca de madeira que impunha limites ao terreno, estavam as dezenas e quiçá centenas de pés de camapus, os quais motivavam, de certo modo, as visitas frequentes, não apenas de Adriana, mas de todos os netos à dona Eufrásia.

Então, a gente ia pra casa da vovó e a gente catava o camapu e eu abria aquela bolinha amarela e comia. Gostava muito. Engraçado é que na época de camapu íamos todos os netos e na hora de colher o fruto nós acabávamos brigando, porque nos catávamos todos juntos e depois íamos repartir e nessa hora tinha um que queria ser mais esperto e ficava com mais que os outros.Inclusive eu era uma dessas espertas, sempre comia mais que todo mundo.A vovó gostava muito, porque a gente catava e levava os camapus pra ela que estava sem andar (Conversa via WhatsApp).

Isso posto, torna-se imperativo registrar aqui, que as memórias, histórias e afetos que compõem este ensaio, foram possíveis a partir de uma publicação que fiz em minhas redes sociais (Facebook e Instagram), na qual, postei uma das imagens deste artigo contendo a seguinte legenda: “Você conhece esta fruta?” Em pouquíssimo tempo depois da postagem, meus amigos internautas deram início às suas manifestações. Dentre elas, uma acabou se tornando muito especial, falo dos atravessamentos do camapu nas memórias, nas histórias e nos afetos do amigo Nazareno Silva e de sua mãe, dona Raimunda Silva, que é nativa de Cachoeira do Arari, no Marajó.

Nazareno foi afetado, de tal modo, pelo conteúdo da referida publicação que, em reposta a ela, publicou em meu Facebook uma linda imagem de uma árvore de camapu que estava sendo cultivada por dona Raimunda na varanda de seu apartamento.

Fonte: Nazareno Silva

A história de Nazareno, ou melhor, de sua mãe com o camapu me chamou atenção de modo que, mais tarde, via Whatsapp, Nazareno me confirmou que a própria dona Raimunda iria gravar um áudio contando suas experiências de infância, Infelizmente, dona Raimunda não teve tempo de me contar sua história, pois naquele mesmo dia, 07 de junho de 2021, ela foi acometida por uma parada cardíaca que lhe levou a óbito. Ao querido Nazareno, registro aqui meus sentimentos pela perda inestimável de sua mãe, assim como minha gratidão, porque, apesar do triste evento que culminou com a partida repentina de sua mãe, dispôs-se a contar a história que ela não teve tempo de assim fazê-lo.

Segundo Nazareno, o camapu fez parte da infância de dona Raimunda, pois as suas caminhadas por uma estrada de chão que a levava de sua casa até a escola eram sempre acompanhadas de árvores de camapu que a alimentavam e a distraíam, também. O reencontro de dona Raimunda com a planta se deu recentemente, isso porque Nazareno percebeu que ela se encontrava se um pouco desanimada, talvez por conta dos últimos eventos provocados pela pandemia. Foi então, com a intenção de animá-la que Nazareno lhe propôs cultivar plantas em seu apartamento. Proposta aceita, deu-se início ao cultivo e entremeando as plantas que germinavam, dona Raimunda percebeu que havia uma que só foi por ela reconhecida depois de alguns dias de crescida e quando isso aconteceu

Foi aquela alegria, ela me falava todos os dias sobre o camapu: como ele se comportava, se ia crescer muito, que os galhos dele estavam quebrando, que era preciso amarrar. e ao final do dia ela se reportava a sua memória, contando delequando era pequena, o que ele influenciou na vida dela. (Conversa via WhatsApp).

Então, conforme o relato de Nazareno o camapu não apenas devolveu alegria ara os últimos dias de vida de dona Raimunda, como também aguçou nela, histórias, memórias e afetos. Por isso, a árvore de camapu de dona Raimunda agora vive na casa de Nazareno e a mudança de endereço da planta tem uma motivação muito especial: “O que me preenche é que o camapu fez parte desse momento final, assim como fez parte do momento inicial da vida dela. E hoje a minha memória tem se reportado a ele. É nele que eu sinto a energia e presença da mamãe.” (Conversa via WhatsApp).

Por fim, considerando as narrativas que tecem este ensaio pode-se pensar que, no contexto amazônico, o camapu funciona não apenas como alimento, mas, particularmente, como comida, ou seja, como aquilo que faz referência “[…] a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa”. (DAMMATA, 1986). Essa dimensão, de comida, atribuída ao camapu, pode ser notada, por exemplo, na sua capacidade de acionar lembranças, memórias, histórias e afetos dos comensais que povoam os territórios amazônico do Norte brasileiro.


Miguel Picanço: Doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA- UNIVERSIDAD DE BARCELONA). Pós- Doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo. ODELA/ Universidad de Barcelona.


Referências

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de janeiro: Rocco, 1986.

SOARES, Cleo. OLIVEIRA, Daleth . Cura que sai da Floresta Amazônica para o mundo. O Liberal. Disponível em: https://www.oliberal.com/liberalamazon/cura-que-sai-da-floresta-amazonica-para-o-mundo-1.405656. Acesso em 10 de julho de 2021.

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