Identificado em Rondônia mais um barbeiro que pode transmitir doença de Chagas

Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP identificaram, pela primeira vez, o protozoário causador da doença de Chagas (Trypanosoma cruzi) em barbeiros da espécie Rhodnius montenegrensis, coletados na cidade de Monte Negro, em Rondônia. Os cientistas também encontraram barbeiros infectados com o Trypanosoma rangeli, que não causa a doença, mas que pode confundir o diagnóstico.

A descoberta gerou o artigo First Report of Natural Infection with Trypanosoma cruzi in Rhodnius montenegrensis (Hemiptera, Reduviidae, Triatominae) in Western AmazonBrazil, publicado em julho na revista Vector-Borne and Zoonotic Diseases.

Estudos com a população moradora dos locais próximos onde os barbeiros foram encontrados indicam inexistência de transmissão da doença. Entretanto, apenas a presença do inseto perto dos domicílios já serve de alerta, pois representa um risco para a população. Segundo revisão sistemática publicada em 2014, estima-se que o número de casos de doença de Chagas no Brasil, atualmente, gire em torno de 4,6 milhões de pessoas.

O estudo foi realizado pela pesquisadora Adriana Benatti Bilheiro, da Universidade Federal de São João del-Rey, sob a orientação do professor Luís Marcelo Aranha Camargo, coordenador do ICB5, núcleo avançado da USP na cidade de Monte Negro que realiza pesquisas científicas e atividades de ensino, além de projetos da área da saúde com a comunidade local e da região.

Foto: Adriana Benatti Bilheiro/Jornal da USP

A espécie Rhodnius montenegrensis foi descrita em 2012 pelo pesquisador João Aristeu da Rosa, docente do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a partir de uma pesquisa de campo de coleta de barbeiros coordenada por Aranha Camargo.

“Essa descoberta é bem importante porque é uma espécie nova onde encontramos o T. cruzi e ela apresenta potencial para transmissão. Só acreditamos que ainda não está havendo porque o ambiente da casa amazônica é inóspito para o barbeiro”, explica o coordenador do ICB5.

Segundo Aranha Camargo, o perfil de infecção pelo T. cruzi mudou ao longo dos anos. Antes, os Estados do Nordeste, além de São Paulo e Minas Gerais, concentravam os casos de Chagas no Brasil, com transmissão da doença através da urina e fezes do barbeiro, que abriga os parasitas e que, por sua vez, penetram pela pele no local da picada. As casas de pau a pique (barro), muito comum nesses locais, eram o hábitat perfeito para o barbeiro: temperatura adequada e espaços nas paredes onde podiam se esconder e se reproduzir, saindo à noite para se alimentar de sangue humano.

“Nos últimos dez anos, a ocorrência de casos de doença de Chagas desviou do eixo Sudeste-Nordeste para a região Norte, onde temos entre 30% a 40% dos casos brasileiros, totalizando mil casos novos notificados somente na região nos últimos dez anos”, informa Aranha Camargo. Em Monte Negro, a maioria das casas é de tábua com cobertura de telhas de amianto, o que deixa o local muito quente e sem “esconderijos” para o barbeiro.

Contaminação alimentar

Atualmente a transmissão é muito menos por via vetorial, ou seja, pelas fezes e urina do barbeiro no local da picada, e muito mais por contaminação de alimentos. O barbeiro é atraído pela luz da casa e pode cair dentro do alimento e ser triturado ou esmagado. Nesse tipo de contaminação, a doença se manifesta de uma forma mais severa, mais virulenta, por causa da forma de apresentação do parasita para o sistema imune humano. “No Estado do Pará, devido ao hábito de consumo de açaí in natura, em que a polpa e as sementes precisam ser trituradas, a contaminação via oral é muito comum”, conta.

Foto: Adriana Benatti Bilheiro/Jornal da USP

Em Monte Negro, os barbeiros foram encontrados vivendo dentro de palmeiras, principalmente babaçu e bacuri, onde encontram abrigo, e se alimentam de sangue de ratos, aves, gambás e outros marsupiais. Futuramente, eles podem migrar para o peridomicílio humano e começar a se alimentar de cachorros, porcos e galinhas. No caso do babaçu, o desmatamento e as queimadas favorecem a sua proliferação.

Aranha Camargo conta que foram encontrados, em média, cerca de cinco barbeiros por palmeira. Quanto mais perto das casas, maior era a quantidade desses insetos. “Independentemente de se domiciliar ou não, ele ainda representa um risco de transmissão de T. cruzi pela via oral, pois pode contaminar os alimentos que estão sendo preparados”, alerta.

A doença de Chagas

A doença de Chagas tem duas fases. A aguda ocorre entre uma semana e 15 dias após a infecção e pode ser confundida com um doença febril, malária, dengue ou gripe. O local onde o parasita depositou as fezes e a urina fica inchado e avermelhado (chagoma). Nesta fase aguda, muitas pessoas podem morrer por meningoencefalite (um tipo de meningite) e miocardite (inflamação aguda do coração que pode causar parada cardíaca e arritmia cardíaca).

Leia Mais: Secretaria de Saúde do Amazonas confirma presença de parasita da Doença de Chagas em açaí

“Não se faz diagnóstico nesta fase”, lamenta Aranha Camargo. “Seria fácil fazer o diagnóstico assim como fazemos para a malária”, explica, lembrando que o ICB5, por ser uma unidade de pesquisa da USP, faz o diagnóstico para Chagas, porém o mesmo não ocorre rotineiramente no SUS.

Depois dessa primeira fase aguda, a doença entra em sua forma silenciosa. O parasita se reproduz nas células musculares cardíacas e do tubo digestivo. Ele se multiplica e forma outras “ninhadas” de tripanossomatídeos.

De modo geral, 30% dos infectados não apresentam sintomas e morrem com Chagas mas sem manifestação clínica da doença.

Outros 30%, aproximadamente, apresentam manifestações gastrointestinais. As mais clássicas são dificuldade de engolir, deglutir alimentos e eliminar fezes. Ao se desenvolver em células nervosas do tubo digestivo, o parasita as destrói, o que leva à perda da motilidade desse sistema (que empurra o bolo alimentar da boca ao ânus). O esôfago pode perder o movimento que empurra o alimento e muitas pessoas morrem de desnutrição. Outras têm a paralisação do sistema do tubo digestivo na parte terminal e não conseguem eliminar as fezes, ficando semanas sem evacuar. Nesses casos, pode ser necessário intervenção cirúrgica.

Os outros cerca de 30% desenvolvem as formas cardíacas da doença. O parasita se multiplica no coração e vai destruindo as fibras do órgão, que deveria ser elástico, mas vai ficando fibrosado (cicatrizado) e perdendo a capacidade de contração. Dependendo do local onde o parasita se alojou, ele pode também interromper a condição de estímulos elétricos do sistema elétrico do órgão, dando origem a arritmias ou insuficiência cardíaca – ou ambas.

Foto: Adriana Benatti Bilheiro/Jornal da USP

Em poucos casos, cerca de 10%, a doença se manifesta tanto na sua forma cardíaca como na digestiva.

O tratamento é feito com benzonidazol, distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com certa regularidade. O medicamento é capaz de curar a doença de Chagas, pois mata o parasita e interrompe sua multiplicação.

Quanto mais precoce o tratamento, maiores as chances de cura sem evolução de gravidade da doença. O diagnóstico não costuma ser rápido. Em Monte Negro, por exemplo, o setor público está treinado para realizar testes de detecção de malária, mas não para o Trypanosoma cruzi.

“Minha sugestão é o governo qualificar os mesmos microscopistas que fazem diagnóstico de malária para que sejam treinados para identificar o T. cruzi”, sugere o docente.

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Análise dos biomas

Na próxima fase, os pesquisadores pretendem ampliar o estudo e verificar a ocorrência de barbeiros nos quatro biomas existentes em Rondônia: cerrado, área entrópica (pastos onde há muito babaçu), floresta amazônica e floresta fluvial (beira de rio).

Segundo os pesquisadores, “no Estado de Rondônia, não há registro de casos autóctones de Chagas nos últimos anos. Entretanto, há registro de seis espécies de triatomíneos (barbeiros), uma grande variedade de reservatórios silvestres do T. cruzi e intenso processo de desmatamento que pode, ao longo do tempo, induzir à invasão e colonização de triatomíneos em áreas domiciliares e peridomiciliares”.

O ICB5 é um departamento do Instituto de Ciências Biomédicas da USP criado em 1997, na cidade de Monte Negro, em Rondônia. A princípio, o objetivo era pesquisar doenças tropicais negligenciadas como malária, Chagas, leishmaniose, verminoses e micoses profundas. Atualmente dedica-se também ao estudo e tratamento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como hipertensão, diabete e dislipidemias (gordura no sangue). Além de desenvolver estudos nessas áreas e realizar atendimento em saúde para a população de Monte Negro e região, o ICB5 oferece um cenário de internato e um programa de estágios.

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