Salto alto na estrada: conheça Afrodite, o caminhoneiro crossdresser do MT

 
Nas estradas do Mato Grosso, a masculinidade, machismo e força bruta frequentemente associadas aos caminhoneiros contrasta com a delicadeza e sensibilidade de Afrodite. Na boleia de seu caminhão, músculos e palavrões dão lugar a meias-calças, batons e saltos altos. Aos 68 anos, ela só usa preto, em sinal de luto. Mas o sentimento não se refere à perda de um ente querido. Afrodite diz que vive em luto pelo homem que morreu dentro dela; ou melhor, o homem que ela matou quando se assumiu crossdresser, que é o ato da pessoa se vestir e usar adereços do sexo oposto, independentemente da orientação sexual.

“Doei todas vestimentas masculinas e uso quase exclusivamente muita roupa preta. Quando sou indagado o porque do preto explico que é sinal de luto pelo homem que morreu em mim”, explica.

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

Apesar de se vestir como mulher, Afrodite não se considera homossexual e diz que as histórias de Rogéria e Roberta Close a inspiraram a dar vazão a seus desejos.

“Nunca quis ser uma travesti ou homossexual, queria ser mulher e ter um homem”, explica.

Hoje, dois casamentos, uma filha, uma neta e milhares de quilômetros rodados depois, Afrodite mora em Cuiabá, capital do Mato Grosso. Ela conta que já iniciou os tratamentos hormonal e psicológico, visando o processo de redesignação sexual.

“Meu sonho sempre foi ser mulher, andar e me vestir como mulher. Eu nunca me conformei com meu corpo de homem. Desde criança sempre questionava minha mãe sobre os meus seios, que não cresciam. Fundamentada pelo espiritismo, ela me respondia: nesta encarnação o seu corpo veio de homem, mas seu espírito é de mulher. O tempo passou e eu cresci com ânsia por ser uma mulher. Hoje, eu sou homem ainda”, lamenta.

Na mitologia grega, Afrodite era a deusa do amor, da beleza corporal e do sexo. Para os gregos, ela tinha uma forte influência no desenvolvimento e prazer sexual das pessoas. Era considerada também a deusa protetora das prostitutas na Grécia Antiga. A Afrodite do Mato Grosso, no entanto, ainda busca a sua própria identidade.

Ao Portal Amazônia, ela contou alguns dos dramas, angústias, dúvidas e esperanças que a acompanharam pela principal estrada que ainda atravessa: a própria vida.

O começo
: Infância e bullying

Afrodite nasceu Heraldo Almeida Araújo, em Jacarezinho, no Paraná. Desde a infância, sempre nutriu o desejo de ser do sexo feminino e se sentia mais à vontade em atividades femininas. Na escola, as atividades preferidas do pequeno menino eram bordado, tecelagem e costura.

Como é comum em casos incompatibilidade de gênero, o futebol e outros jogos relacionadas aos meninos só causavam constrangimentos e sofrimentos. Por causa deste comportamento, durante toda a infância, Afrodite sofreu preconceito e foi vítima de bullying por parte dos colegas.

“Eu detestava ter que jogar bola. Muitas vezes fui taxado de mariquinha e chorava muito quando quando o professor me obrigava a tirar a camiseta para diferenciar os times. Eu tinha vergonha de tirar a camiseta, era como se meus seios ficassem à mostra. E eu nunca tomava banho junto com os meninos. Dizia para minha mãe que não queria mais ir à escola”, relembra. 

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

E assim Afrodite foi crescendo, ouvido gozações e xingamentos. Aos 12 anos, ela se mudou para São Paulo junto com a família. Na nova cidade teve a oportunidade de trabalhar em uma tecelagem, onde pôs em prática, pela primeira vez, os seus desejos secretos.

“Quando comecei a trabalhar fui mudando minhas atitudes, mas continuava com anseios de ser uma jovem. Quando eu estava sozinho produzia algumas peças íntimas e usava por baixo da roupa, e isso era um orgulho pra mim”, desabafa.

Serviço
Militar

Sempre se disfarçando, usava roupas íntimas femininas para se sentir mais a vontade, até mesmo quando serviu ao exército. Afrodite conta que, durante o serviço militar, a ideia de ser ferida ou morta em um possível combate era menos preocupante do que ter seu segredo revelado.

“Fiquei 3 anos no exército e fui cabo. Na hora que eu ia tomar meu banho, eu tinha que ficar no último chuveiro. Nunca ninguém me molestou ou percebeu nada. Eu tinha preocupação de ser ferido ou morto e, na hora que me tirassem a farda, vissem minha roupa íntima por baixo e descobrirem”, disse.  

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser
Casamentos

Na vida adulta, as relações com mulheres e os casamentos ajudaram Afrodite a se redescobrir. Após a separação de seu primeiro casamento, Afrodite começou a revelar seus anseios secretos, saindo algumas vezes com roupas femininas quando estava viajando. Nas paradas para abastecimento nas estradas, costumava ir ao banheiro masculino, sempre com trajes tipicamente femininos. Ela relata que, apesar de se vestir como mulher, nunca foi abusada, mas que levava cantadas dos colegas de estrada.

“Eu explicava que não era homossexualidade e sim uma fantasia ou aposta com outros colegas”, afirma.

No segundo casamento, Afrodite conta que era frequentemente perseguida pela esposa. Mesmo conhecendo previamente sobre as tendências do marido, a mulher acreditava que os desejos de Afrodite estavam ligados à prostituição. Segundo Afrodite, a ex-companheira costumava revistar seus objetos, coisas pessoais e até mesmo o corpo dela em busca de sinais de roupas íntimas.

“Eu era constantemente vigiado e difamado pois ela comentava com outras pessoas dizendo que me tirou do mundo da prostituição, pois, sendo evangélica, tinha esta filosofia. E quando me encontrava com amigos homens, achava que estava transando com eles; se fossem mulheres, eram mulheres da vida, pois não fazia distinção mesmo que fossem evangélicas ou minhas parentes”, relata.

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

Vivendo um casamento que não a satisfazia mais, Afrodite finalmente resolveu se assumir e não mais teve relações com a esposa.

“Ia ao salão, pintava unhas com cores claras, e assim ela foi entendendo que eu não tinha por que esconder e estava decidido a fazer o que gostava. Após um tempo nos separamos e então recebi com alegria meu modo de ser”, diz Afrodite.

Nesta fase, Afrodite passou a ter que explicar seu novo modo de vida aos amigos e conhecidos. Quando indagada, ela explicava que era uma moda lançada pelas mulheres do século XIX, inventada pelas moças que se vestiam com roupas masculinas para se disfarçarem de homens e assim poderem trabalhar nas fábricas e receberem o mesmo salário que eles.

“Eu era um crossdresser e não um homossexual. Um crossdresser não modificava seu corpo”, se define.

O nascimento de Afrodite

Com o passar do tempo, Afrodite foi ficando cada vez mais desinibida. Não só pintava unhas com cores fortes como também usava enfeites, camisas, calças e calçados tipicamente femininos, inclusive para trabalhar. Assim, ela foi se libertando dos preconceitos e ficando mais ousada.

“Para mim era o maior orgulho quando me elogiavam, tanto homens quanto mulheres, e levava cantadas ou assobios na rua”, admite.

Afrodite decidiu então que deveria por em prática seu sonho de infância e viver seu lado feminino. Passou então a usar somente roupas femininas e sapatos com salto alto e outros adereços, inclusive deixando crescer os cabelos. Passou a utilizar os sanitários femininos e viajar, tanto a trabalho quanto a passeio, sempre vestido de mulher.

Foto:Arquivo/Afrodite Sequiser

Há cerca de um ano Afrodite tomou uma decisão radical e resolveu que deveria modificar o corpo. Após iniciar o tratamento hormonal para ganhar contornos mais femininos, Afrodite relata um sentimento dúbio em relação ao próprio corpo. Sentimento que, na opinião dela, poderá ser superado com a cirurgia de redesignação sexual.

“Hoje, quando me olho no espelho, vejo com orgulho e alegria os meus seios crescendo e tristeza ao baixar os olhos e ver meu órgão masculino. Ainda, mas acho que não será por muito tempo. Se concretizará o sonho da minha infância”, confessa. 

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

O processo de redesignação sexual inclui também acompanhamento psicológico e processo para troca de nome. Afrodite afirma que já deu início os procedimentos para oficializar a nova identidade feminina escolhida por ela, que inclui nome e sobrenome.

“Hoje me chamo Afrodite Sequiser. O sobrenome foi posto por minha filhotinha a qual amo de paixão. Quando algum amigo ou cliente me chama pelo meu nome de batismo corrijo na hora e sempre me apresento para as pessoas pelo meu nome social. O constrangimento vem quando estou em uma consulta médica ou repartição me chamam pelo nome pois tenho que apresentar os documentos originais. Algumas pessoas ficam sem entender e assustadas”.

Orgulhosa de quem é, Afrodite minimiza possíveis hostilidades por parte de colegas de profissão e demonstra segurança com relação à própria identidade.

“Sei que não estou envergonhando meus irmãos da estrada pois todos somos cristãos e compreendemos os seres humanos. Creio que não estou agindo errado nem com desvio de conduta pois sei o que quero para mim e não envergonho ninguém e não me sinto nem um pouco diminuído”, garante.

Arte:AVG/Rede Amazônica

Reação da família

A publicitária Tatiana Gonçales, filha de Afrodite, conta que soube sobre os desejos do pai há aproximadamente cinco anos. Por morar fora de Cuiabá, o primeiro contato com ele em trajes femininos aconteceu somente no ano passado.

“Ele só foi se abrir comigo pessoalmente ano passado. Morava em Goiânia e fui buscá-lo no aeroporto já como Afrodite”, conta.

Depois de mais de quarenta anos convivendo com o lado masculino do pai, ela explica como foi a reação ao conhecer a sua nova identidade.

“Não vou dizer que não tive um choque, pois foram mais de 40 anos com um pai e, de repente, estava diante de outra figura. Recebi [a notícia] com surpresa e certa apreensão, pois me causa preocupação o preconceito e agressões que ele possa sofrer. Estamos no século XXI mas, sabemos o quanto a humanidade está longe de ter amor uns com os outros e respeitar as escolhas de cada um”, assume.

Tatiana é mãe de Vívian, única neta de Afrodite que, assim como os pais, também a apoia. “Vívian aceita e apoia essa escolha, assim como eu e meu esposo”.

Mas nem toda a família respeitou a nova persona de Afrodite. Tatiana conta que, com relação aos irmãos e sobrinhos, uma parte aceitou e outra preferiu cortar relações.

“Começou com comentários pejorativos por parte de primos e tios. Existe bastante sofrimento por isso, eu sei. Mas meu pai sabe também que não pode impor essa vida dele para os que não aceitam. Afinal, também seria uma forma de desrespeito. Portanto, uma contradição ao que ele mesmo prega e espera”, lamenta.

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

Mas, ao contrário desta parte da família, a filha de Afrodite dá um exemplo de amor e de tolerância, não só em relação ao seu pai, mas também à toda comunidade LGBT+.

“Amo demais e respeito meu pai por tudo o que ele representa para mim. Trato-o da mesma maneira de sempre. Essa é a forma que ele encontrou de se realizar, de ser feliz e acredito que todo ser humano tem direito à sua parcela de felicidade, desde que não fira o seu próximo. Para resumir, aceito e respeito a escolha dele. Jamais me ocorreu de rejeitar meu pai por isso. Respeito toda a comunidade LGBT+ e sendo meu pai, ainda mais”, diz.

Detalhe: Tatiana não consegue tratá-lo no feminino e nem usar o nome social. “Pra mim, ele é Heraldo, homem e pai. Mas ele entende e nem exige nada diferente. É o hábito de mais de 40 anos”.

Apoio e saudade

No processo de redesignação sexual, Afrodite conta hoje com a ajuda da filha Tatiana, do genro de da neta. Mas sente falta de uma das principais incentivadoras. Segundo ela, a sua mãe foi, durante muitos anos, a única pessoa que a entendia e encorajava a realizar o grande sonho.

“Sinto a falta da minha querida mãezinha, pois era a única que sabia e me encorajava a não perder a esperança. Dizia que a ciência evoluía a cada dia e que não seria impossível a minha transformação. Nunca desistir dos nossos sonhos. Hoje sei que ela me assiste do mundo espiritual pois sinto isso e vejo que a cada dia estou mais feliz. Sei que não estou sozinha e por isso estou confiante pois creio em Deus acima de tudo e na interseção de minha querida mãezinha”, acredita ela.

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

Final feliz?

De todas as estradas que Afrodite cruzou na vida, com certeza, a mais longa e difícil foi a do autoconhecimento. Foi também a viagem mais importante. E ela ainda não chegou ao fim. Ainda é possível perceber Afrodite referindo-se a si mesma ora no masculino, ora no feminino, afinal de contas foram mais de 60 anos percorrendo, na contramão de seus desejos, a mesma estrada torta, insegura e incerta. Com uma carga recheada de esperança, a viagem de Afrodite se aproxima agora de seu destino final: um final feliz.

“A Afrodite, deusa grega cultuada nos lares, cujo nome adotei para mim desde tenra idade pois sempre me encantei com sua história e tenho admiração pelo mar. Não consegui servir a Marinha mas também viajo muito por água. Afrodite, deusa do amor, da amizade da sexualidade e dos lares. Sou grata pelo que sou hoje e agradeço aos que me compreendem. Essa é minha história que ainda não acabou mas terá um final feliz, e tenho primado para isso”, finaliza Afrodite.

Foto: Arquivo/Afrodite Sequiser

*Com a colaboração de William Costa

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