Na cidade de São Paulo, foram disponibilizadas 300 vagas para alocar os imigrantes venezuelanos. Inicialmente, no plano piloto, a capital receberá 186 pessoas – 115 homens e 71 mulheres – em nove equipamentos municipais, quatro deles especializados em migrantes, e cinco centros de acolhida para pessoas em situação de rua. Haverá também 180 vagas para Manaus. A interiorização dos venezuelanos pelo país é inevitável, independentemente das ações do governo federal, devido à sobrecarga enfrentada em Roraima, segundo avaliação da organização não governamental (ONG) Conectas, que acompanha a situação dessas pessoas.
“São homens e mulheres solteiros [que irão para São Paulo]. Preferimos começar com esse perfil para testar. Queremos fazer isso da forma mais organizada e humanizada possível para avaliar a possibilidade de famílias e crianças, mas queremos ser bastante responsáveis no primeiro momento para aprender com essa experiência”, disse o secretário municipal de Assistência Social de São Paulo, Filipe Sabará.
Questionado sobre a experiência negativa na acolhida dos haitianos, entre os anos de 2014 e 2015, quando muitos deles não se adaptaram aos lugares em que foram alojados, o secretário disse que, na época, esses imigrantes haviam sido acolhidos nos antigos albergues para população em situação de rua, que não tinham estrutura adequada às necessidades. Agora, segundo ele, mesmo alguns dos centros sendo destinados à situação de rua, são equipamentos novos, inaugurados recentemente e que contam com melhor estrutura.
“[Os atuais centros de acolhida] são espaços qualificados, com dormitórios, banheiros, chuveiros, sala de informática, sala de terapia individualizada, área de estudos, então são serviços bastante qualificados e que podem receber muito bem essas pessoas. Temos parceria com a Secretaria de Saúde, isso já faz parte do escopo do sistema de acolhida, está incluído no pacote”, disse.
Outro fator que dificultou a interiorização dos haitianos, que entravam pelo estado do Acre, foi a decisão unilateral de mandá-los para outros estados, sem a coordenação com governadores e prefeitos que os receberiam e sem a mediação do governo federal.
“O primeiro ponto é que a interiorização [dos haitianos] não foi uma política coordenada entre governos locais, entre o estado que estava mandando e o que estava recebendo e sem o papel do governo federal. Aquela foi uma decisão unilateral do governo do Acre e que foi muito problemática, porque não estava garantida a devida informação aos haitianos sobre para onde estavam indo. O fato de nem o governo do estado nem a prefeitura estarem cientes disso fez com que essas pessoas fossem simplesmente despejadas na cidade, e não houve nenhuma preparação para acolher essas pessoas”, avaliou Camila Assano, da ONG Conectas e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Coube à sociedade, sobretudo à Missão Paz, fazer a acolhida emergencial na cidade, e a prefeitura teve que, às pressas, criar uma estrutura para receber essas pessoas. “São Paulo já deveria ter, é uma cidade historicamente marcada pela migração e já deveria ter essa estrutura”, acrescentou Camila.
Apesar de a Colômbia atrair a maior parte daqueles que deixam a Venezuela, tanto por fazer fronteira quanto por ter a mesma língua, o Brasil tem se mostrado um destino residual. De acordo com a Conectas, 600 mil venezuelanos entraram na Colômbia nesse último período de crise, mas o país tem fechado a fronteira em alguns momentos e passou a exigir passaporte dos imigrantes.
No Brasil, cerca de 32 mil venezuelanos já pediram refúgio ou residência temporária desde 2015, quando começou o fluxo migratório para o país, informou a Casa Civil. Mas o fluxo na fronteira é ainda maior, já que muitos deles voltam à Venezuela para buscar familiares ou para levar dinheiro para quem ficou. Por dia, entram de 600 a 800 venezuelanos no Brasil, mas eles não necessariamente se estabeleceram aqui.
O venezuelano Carlos Daniel Escalona Barroso, que trabalha atualmente na cozinha de um hotel na capital paulista, chegou ao país em junho de 2016 e já entrou com pedido de refúgio. Ele chegou a Manaus de ônibus e depois pegou um voo para Fortaleza, onde ficou por seis meses até ir para São Paulo. Após pedir refúgio ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), recebeu um protocolo, que pode ser usado como documento principal para tirar Carteira de Trabalho, para alugar imóveis e até para abrir conta em banco.
No entanto, Barroso encontrou dificuldades justamente nos bancos públicos – Caixa e Banco do Brasil – que não aceitaram o protocolo. Somente no Itaú, ele conseguiu a abertura da conta. “Nos bancos públicos não deu certo, eles falaram que isso não é documento”, disse. Até o momento, seu pedido de refúgio não foi concedido.
Na Venezuela, Barroso sofreu ameaças e até um sequestro por ter recusado propina em seu cargo, em um governo estadual. “Eu trabalhava na administração pública. Chegaram oferecendo uma propina, eu não aceitei e aí começaram as consequências. Chegou um ponto em que fui sequestrado, minha família foi ameaçada e eu não podia ficar sempre na mesma casa. Me levaram, apanhei na cabeça, nas costas. Depois me soltaram, mandaram correr e dispararam tiros. Fiquei muito mal emocionalmente”, contou. Foi quando decidiu sair do país.
Parcerias e cursos
A maioria (72%) dos imigrantes venezuelanos em Roraima está na faixa etária entre 20 e 39 anos; 78% têm nível educacional equivalente ao ensino médio completo e 32% têm curso superior ou pós-graduação. Os dados são de pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) na Acnur (Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados), que mostrou que, devido às características dos imigrantes, esse é um contingente com grande potencial de ser “plenamente inserido na sociedade e no mercado de trabalho brasileiro”.
A pesquisa mostrou ainda que políticas de interiorização têm ampla aceitação entre os imigrantes venezuelanos em Roraima – 77% dos entrevistados disseram que aceitariam se deslocar para outro estado caso o governo brasileiro desse apoio. A oferta de trabalho (80%) em outro lugar do país é a principal demanda para aceitar o deslocamento, seguida de ajuda econômica (11,2%) e auxílio-moradia (5,2%). Outro dado marcante é que somente 25% deles pretendem voltar para a Venezuela. Daqueles que pensam em voltar, a maioria (47%) estima um prazo superior a dois anos, mas condicionam o retorno à melhoria das condições econômicas (61%).
Para inserir os imigrantes venezuelanos no mercado de trabalho paulistano, o secretário municipal de Assistência Social contou que há um programa de ensino da língua portuguesa e parcerias para facilitar o contato entre candidatos e empresas. “Temos mantido contato com os consulados dos países que falam a língua espanhola, para que eles possam fazer o contato com empresas, tanto de origem espanhola quanto da América Latina, que facilitem a entrada dessas pessoas, o encaminhamento delas para o mercado de trabalho o mais rápido possível”.
A coordenadora de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente da Secretaria de Direitos Humanos de São Paulo, Andrea Zamur, lembrou que a cidade foi a primeira a implementar o Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante (Crai), em 2014, que é um espaço onde os imigrantes têm suas demandas ouvidas e são encaminhados para espaços onde seus pedidos poderão ser resolvidos.
“Lá, temos atendentes que são todos imigrantes, então, além da facilidade com o idioma, que geralmente é uma grande barreira, eles também têm familiaridade com a temática migratória. Esse é um espaço muito importante pra gente. É um equipamento de referência para acesso a serviços e direitos”, disse Andrea.
No contexto federal, neste mês, a Medida Provisória 823 destinou verba de R$ 190 milhões ao Ministério da Defesa para assistência emergencial aos venezuelanos. De acordo com o ministério, a verba será aplicada em programas de assistência aos refugiados em Roraima e para melhorar as ações de controle na fronteira.
“Serão executadas as seguintes ações: construção e operação de abrigos, recuperação e ampliação de espaços já existentes, instalação de postos de triagem e identificação, apoio logístico de transporte para interiorização dos imigrantes e intensificação de vigilância na linha de fronteira. Os recursos serão utilizados por demanda, à medida que forem evoluindo as ações. O emprego dos recursos tem como foco imediato a aquisição de artigos de higiene pessoal, alimentação especial para crianças e melhoria de centros de destinos já existentes, para proporcionar condições mais dignas aos imigrantes”, informou a Defesa.
Refúgio ou migração?
Os refugiados, segundo os primeiros acordos internacionais que tratam do assunto (a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967), são pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições em seu país de origem e, para garantir a segurança, cruzaram fronteiras internacionais. Como é muito perigoso que voltem ao seu país, elas precisam de refúgio em outro lugar, onde possam ter os direitos básicos garantidos.
Já a definição de migrantes, de acordo com o Acnur, inclui aqueles que escolhem se deslocar, principalmente, para melhorar sua vida, buscar oportunidades de trabalho e educação ou procurar viver com parentes que moram fora do país de origem. No entanto, o contexto mundial trouxe a ocorrência de migrações forçadas, em que as pessoas saem de seus países não por causa de uma ameaça direta de perseguição ou morte, mas por uma situação generalizada de violação de direitos, como a fome e o desabastecimento de medicamentos, além de grave crise econômica.
Considerando um novo cenário de fuga de um país de origem, a Declaração de Cartagena (1984) incorporou a definição ampliada de refúgio, o que incluiria entre os refugiados as pessoas que tenham saído de seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade foi ameaçada pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.
Segundo orientação sobre o fluxo de venezuelanos divulgada pela Acnur no início deste mês, as circunstâncias que levaram à saída de cidadãos venezuelanos se encaixam nessa definição ampliada de Cartagena e há, portanto, de acordo com a entidade, “presunção irrefutável de necessidade de proteção internacional”. Apesar disso, o Brasil ainda não concedeu os pedidos de refúgio aos venezuelanos que chegaram aqui devido à recente crise no país.
Para Camila Assano, da Conectas, a entrada em vigor da nova Lei de Migração (13.445/2017) traz novas possibilidades de regularização migratória, além da concessão de refúgio, como autorização de residência para acolhida humanitária, mas a falta da regulamentação da lei (com detalhamento sobre quem pode pedir, como pedir e como essa residência se daria) inviabiliza que esse mecanismo seja usado atualmente com os venezuelanos.
“A nova lei é inovadora e muito avançada porque abre possibilidades de regularização. Uma delas é a autorização de residência por razões humanitárias. Só que essa residência ainda não foi regulamentada, então ela não está sendo aplicada em princípio, até onde sabemos, a nenhuma nacionalidade. A regulamentação é um ato simples, feito por meio de portaria ministerial, então o Brasil só não regulamenta porque não há vontade política”, disse Camila.
Uma das regulamentações necessárias, no entendimento da Conectas, é que, quem tiver concedida a residência por razões humanitárias, tenha a garantia da não devolução, assim como ocorre na concessão de refúgio, que é um dos princípios internacionais humanitários. O outro ponto é especificar, por exemplo, quais os documentos necessários para esse pedido. “Por ser de razão humanitária, as exigências documentais deveriam ser baixas, entendendo que a pessoa está fugindo de uma situação já de distúrbio”, afirmou.