Flutuantes: casas sobre os rios da Amazônia

Pesquisas feitas por historiadores mostram que o primeiro flutuante surgido na frente de Manaus foi erguido no ano de 1920, na orla do Educandos

Pesquisas feitas por historiadores mostram que o primeiro flutuante surgido na frente de Manaus foi erguido no ano de 1920, na orla do Educandos, pelo paraibano João Aprígio, apenas mais um dos nordestinos excluídos com o fim do comércio intenso da borracha entre 1890 e 1910. Pelas décadas seguintes outros flutuantes foram sendo construídos seguindo no rumo da frente da cidade.

Quando, em 1967, o governador Arthur Cézar Ferreira Reis (1964/1967) resolveu acabar com a ‘Cidade Flutuante’, já estabelecida na orla de Manaus, um levantamento mostrou que quase doze mil pessoas viviam nas típicas casas de ribeirinhos, sobre as águas, naquela região. Todas foram colocadas abaixo. Mas o fenômeno apenas ficou latente e hoje, 50 anos depois do fim da ‘Cidade Flutuante’, esse tipo de conglomerado habitacional ressurge (se é que alguma vez deixou de existir) com força, não se sabe de onde mostrando a verdadeira cara do amazônida, de habitantes que necessitam viver ao lado, ou em cima das águas, ou as mazelas de uma sociedade que não evolui.
 
Raul Souza Guedes Filho é de Tapauá, mas há dois anos mora em um flutuante na Marina do Davi, cercado por dezenas de outros flutuantes, dezenas que podem ser vistos apenas se olhando em volta. Um passeio de voadeira pela região mostra que podem ser bem mais do que dezenas. O IBGE informou não possuir dados relacionados ao número de flutuantes, nem à quantidade populacional na comunidade Marina do Davi.

Foto: Walter Mendes/JC

“Por 15 anos morei num terreno no Rio Preto da Eva, mas como não consegui ganhar dinheiro lá, vim trabalhar num flutuante aqui e, como já tinha uns parentes morando em flutuantes nesse local, resolvi ficar”, contou. Marceneiro, Raul juntou seis troncos de assacu e ele mesmo construiu a casa com amarelinho, cedrinho e jacareúba. A construção mede, mais ou menos, 4m x 8m, com varanda, sala, cozinha, quarto e dois banheiros, mais uma área atrás. Lá, Raul mora com a esposa e dois filhos pequenos.

 
“Todo mundo que mora aqui tem que ter ao menos um bote, senão não tem como ir para a beira”, riu. “Com o dinheiro da venda do meu terreno, comprei dois botes”, contou. Para se manter e à família, Raul utiliza um dos botes para, na beira, vender churrasquinho, preparado numa churrasqueira na própria embarcação. O outro é utilizado para transportar passageiros que desejam ir para lugares na região do Tarumã.
 
O flutuante de Raul está distante 150 metros da beirada que fica atrás. “Mas todo esse terreno aí tem dono. Só podemos encostar lá, mas não construir. Da Marina do Davi a distância é de um quilômetro”, falou.
 
Apesar de viver sobre a água, os moradores dos flutuantes sequer pensam em utilizá-la para o seu principal fim: matar a sede. “Só tomamos banho e lavamos a louça. Pra beber pegamos água potável numa fonte, em terra. Todo mundo aqui pega de lá”, disse. A energia elétrica é puxada por fios submersos desde a Marina do Davi.
 
“Aqui todo mundo é vizinho e não há brigas. Cada flutuante fica no seu espaço. E não dá mais pra aceitar novos moradores. Também não há ladrões e os donos de iates os atracam em nossos flutuantes para que tomemos conta deles. É uma vida muito tranquila”, afirmou.

Foto: Walter Mendes/Divulgação
 
Café da manhã garantido
 
Elessandra de Souza Amorim, prima de Raul, apesar de ter apenas 16 anos, já mora num outro flutuante, na frente do de Raul, há muito mais tempo. “Cheguei aqui com seis anos, ou seja, já moro na Marina do Davi há dez”, explicou. No flutuante de Elessandra ela mora com os pais e cinco irmãos menores, ou seja, todos os irmãos nascidos naquele ambiente. “Temos mais dois parentes que têm seus próprios flutuantes aqui na Marina”, acrescentou. Apesar de a casa onde Elessandra mora, como as demais na Marina, terem mais ou menos o mesmo tamanho, a dela tem uma característica: é de dois andares. Diariamente ela vem pra terra, para a escola.
 
E o comércio básico não falta no lugar. A padaria de Sílvio Uchoa de Melo, há 15 anos na Marina, garante o café da manhã. A história de Sílvio é parecida com a de Raul. Ele morava no Rio Preto da Eva, veio fazer um trabalho na Marina do Davi e acabou ficando no local. Com esposa e dois filhos, há três anos ele montou a padaria, em todo esse tempo sem nome, numa das laterais do flutuante. Detalhe: ao lado do flutuante de Sílvio, outro flutuante serve como templo evangélico para os locais.
 
“Eu mesmo faço os pães, diariamente, uns dez, doze quilos de trigo por dia. Minha esposa fica aqui, vendendo, e eu vou no bote, entregando”, contou. “Não dá pra ganhar muito dinheiro, mas dá pra viver”, concluiu.
 
Respondendo às duas questões do início da matéria, Nelson Matos de Noronha, professor de filosofia da Ufam, disse que viver ao lado, ou sobre as águas dos rios da Amazônia, como os nossos ribeirinhos, “faz parte da vida de pessoas que nasceram ou se adaptaram a esse modo de viver, mas por trás disso existe uma cultura e uma economia nessa maneira de viver”. Para Nelson Noronha, “esse modo de vida não é uma mazela, pois isso desqualifica injustamente o povo ribeirinho. A precarização desse modo de vida se deve à falta de assistência do Estado e à exploração irracional dos recursos naturais e humanos da região”, afirmou.
 
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