Num trecho de terra batida, onde carros trafegam livremente, antropólogos podem encontrar verdadeiras relíquias históricas.
Num trecho de terra batida, onde carros trafegam livremente, o antropólogo com o olhar apurado vasculha com os olhos o chão até se abaixar e recolher o que parecia uma caco como outro qualquer. “É muito fácil encontrar vestígios aqui neste sítio arqueológico”, disse o antropólogo manauara Marcus Anderson. “É uma cerâmica indígena. Dá para notar pela textura do material e pela coloração da peça”. A peça sentida pelas mãos oferece a primeira sensação de que não é um pedaço ordinário de cerâmico, mas algo mais antigo do que se pode imaginar.
Segundo Marcus, sítios como este não são exceções em Manaus. Muitos vestígios indígenas na região são encontrados dessa maneira, próximos ao solo e de fácil localização. Tão fáceis que não parecem ter vindo de um passado tão distante. “Até mesmo nos quintais das pessoas é possível encontrar tais vestígios. A cidade de Manaus tem uma quantidade gigantesca de material histórico”, afirmou.
A abundância de vestígios já chama a atenção de pesquisadores desde o século XVIII. Entratanto a pesquisa extensiva da região amazônica só se deu a partir de 1995 com a criação do Projeto Amazônia Central pelos pesquisadores Eduardo Goés Neves, Michael Heckenberger e James Petersen. O principal objetivo da pesquisa era levantar dados que pudessem contribuir para um maior entendimento da Amazônia arqueológica.
O antropólogo Carlos Augusto, dedicou sua vida no estudo desses vestígios na região e participou de diversas pesquisas do Projeto Amazônia Central. “Só em Manaus nós já identificamos mais de 100 sítios arqueológicos com vestígios da presença indígena. Nós já encontramos peças em quintais, em poços artesianos e até mesmo embaixo de trechos de rua. Manaus era densamente povoado antes da chegada do europeu, são quilômetros e quilômetros de sítios que apresentam os restos do que seriam objetos de sua cultura e dia-a-dia”.
Um dos vestígios principais que demonstram o tamanho da população indígena na região são os cemitério indígenas. Encontrados com frequência eles são agrupamentos de grandes vasos redondos com pequenas cabeças de forma humana em partes da cerâmica. Os vasos são enterrados com a boca para baixo e dentro são guardados os restos mortais desses indígenas. Em Manaus mitos em torno de um suposto ‘tesouro indígena’ fizeram com que muitos desses vasos fossem destruídos ao longo dos anos.
Parte da história da Amazônia, realizada pelas expedições que ocorreram na região também apresentam informações vitais para entender a presença indígena na região. Em 1541, o explorador espanhol Francisco de Orellana teve como missão descer o Rio Amazonas a partir da cidade de Quito, no Peru, em busca de provisões. De acordo com registros do Frei Carvajal, o cronista que acompanhou a empreitada, uma das grandes maravilhas da expedição foi encontrar grandes tribos próximas à margem dos rios.
“Mas ainda nos seguiram durante dois dias e duas noites, sem nos deixarem repousar, que tanto durou para sairmos das terras desse grande senhor Machiparo, e que, no parecer de todos, teria mais de oitenta léguas, todas povoadas, que não havia de povoado a povoado um tiro de besta, e as mais distantes, não se afastavam mais de meia légua, e houve aldeias que se estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra, o que era coisa maravilhosa de ver”
Outro relato apresentado são as xilogravuras presentes num dos álbuns de aniversário de Manaus. De acordo com historiadores não é possível saber quem são os autores das artes, mas os desenhos apresentam imagens da cidade de Manaus entre 1848 e 1888. Uma delas mostra a presença de um cemitério indígena do povo Manaós na praça Dom Pedro II.
No livro, A Amazônia Colonial, do historiador Ribama Bessa Freire, o autor remonta o passado da cidade de Manaus.
[…] a fortaleza que deu origem à atual cidade de Manaus foi construída sobre um cemitério indígena – um fato sugestivo carregado de simbolismo que, como imagem, sintetiza por si todo o processo colonial […] (1990, p.168)
Para o historiador, a construção da cidade sobre um cemitério indígena era uma forma simbólica de demonstração de poder, onde os ditos conquistadores destroem áreas de grande significado para os indígenas da região.
Para o arqueólogo, Marcos Andrade, pode não parecer muito forte mas é uma atitude de muito poder. “Imagina o que aconteceria se uma empresa destruísse todo o cemitério São João Batista para construir um prédio? As pessoas com certeza ficariam extremamente indignadas com a falta de respeito que isso causaria. Essa era a comoção forçada que os portugueses causaram aos indígenas”.
Ainda de acordo com o arqueólogo, não tem como afirmar a quantidade de pessoas que estiveram na região. Estimativas são muito imprecisas, e poderiam em alguns fatores ser extremamente modificadas. O que se sabe entretanto é que toda a região do Estado do Amazonas é riquíssima em artefatos indígenas e que mais especificamente em Manaus existia uma grande massa populacional.
“Nós conseguimos encontrar em quase todas as regiões da cidade sinais extremamente visíveis da presença indígena. Além disso quase todas as cidades do interior do Estado apresentam também vestígios. Há sítios arqueológicos encontrados em Manaus com mais de 300 vasos funerários e alguns outros pequenos com mais de 5000 pedaços de cerâmica e utensílios deixados pelos antepassados”, disse Marcos.
De acordo com dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Manaus atualmente há cinco sítios arqueológicos que possuem características de enterramentos indígenas, com a presença de objetos pessoais no interior das urnas funerárias, como contas de colar, machadinhas e tigelas. São os sítios da Praça Dom Pedro II, Japiim, Nova Cidade, Lages, UDV.
Ainda de acordo com o instituto, no Estado do Amazonas possui atualmente mais de mil Sítios Arqueológicos conhecidos ao longo de sua extensão territorial. A grande maioria, mais de 95%, desses sítios arqueológicos são de ocupação indígena.
Trabalho do antropólogo
De acordo com Carlos Augusto, os sítios geralmente sofrem alterações através de ações naturais, ou em áreas urbanas, por um processo de antropização. “Um desses exemplos é a Praça Dom Pedro II. Em 2006 nos encontramos urnas funerárias, datados da época amazônia pré-colombiana, numa área de 18 metros largura e 120 de comprimento. Lá nos fizemos 256 tradagens, que são furos no solo. Lá encontramos 4 urna funerária e duas com ossos humano presentes”.
O que para alguns são apenas pedaços sem sentido de um passado distante, para os antropólogos são fonte importante de informação sobre o passado desses nativos. Das sementes encontradas, aos desenhos e o modelo cerâmica, tudo é analisado e conta um pouco sobre esses antepassados.
Um fato curioso descoberto pelos antropólogos é que os indígenas já utilizavam o látex da seringa para criar uma espécie de lamparina. “É muito comum encontrar resinas, não só da seringa, mas de outra espécies com vestígios de queima. É possível encontrar também, ainda hoje, muitas seringueiras próximo às regiões onde esses vestígios são encontrados”, disse Carlos Augusto.
Para a antropóloga Arminda Mendonça os vestígios são muito sutis e contam muita da história desses povos. “Se bem preservado um sítio arqueológico mostra através da forma como a terra foi compactada por onde os índios mais circulavam, onde eram suas casas, quem morava nessas casas. Através dos vestígios de queima é possível saber qual era a base da sua alimentação, que animais cozinhavam, como faziam fogo. Todas essas informações nos contam muito sobre o passado”.
Segundo ela, infelizmente muitos sítios são descobertos após sofrerem algum dano. “Infelizmente os vestígios são geralmente encontrado por empresas ou pessoas após escavarem alguma região, muitas vezes já destruindo parte das vestígios que seriam analisados. Não existe atualmente um processo de busca de sítios arqueológicos de maneira extensiva”, afirma a pesquisadora.
Para o problema é acrescido do próprio órgão. “O IPHAN é um problema, eles se baseiam no cumprimento da legislação, e infelizmente é necessário muito mais que a lei para fazer a salvaguarda do património arqueológico. Ainda mais num território tão rico em vestígios como o Amazonas. Por isso é preciso que sejam investidos mais recursos em pessoal e material para fazer um trabalho de maneira mais extensiva”.
A 25 quilômetros de Manaus está localizada o sítio arqueológico de Hatahara, situado no município de Iranduba. Por grupos científicos de todo o mundo o sítio é excepcional pelo tamanho e pela quantidade de vestígios humanos, animais e vegetais encontrados.
Para Carlos Augusto outros Hatahara podem estar por aí, a serem descobertos. “Outros espaços como esses, que poderiam nos contar muito sobre esses povos podem estar por aí, sendo negligenciados ou até mesmo destruídos. É possível com urgência analisar formas de assegurar que nós não estamos destruindo nosso passado de forma definitiva”, finaliza.
Conflitos gerados por invasões de terras configuram hoje o principal eixo estruturante da violência na Amazônia Legal, segundo conclui o estudo Cartografia das Violências na Amazônia.