Comidas do Círio

A festa do Círio de Nazaré comemorada no próximo domingo é um evento tipicamente paraense. A maior festa religiosa do país, que traz transformações intensas para a vida da cidade e de sua gente. Recebemos pessoas de todas as partes do mundo. A impressão é que a cidade duplica, triplica de população. Cores, luzes, música, cheiro de comida por todo lugar. Até para não-católicos, como eu, Belém se transmuda numa capital universal, relembrando grandes tempos em que era uma referência internacional de cultura.

E a imponência do Círio impressiona. Henry Bates, um dos chamados “viajantes”, pesquisadores, cientistas e cronistas que vieram à Amazônia desde o século XVII estudar seus hábitos e costumes, chegou a escrever na sua obra mais importante, ‘Um naturalista no Rio Amazonas”, que o Círio de Nazaré “é a mais importante de todas as festas”.

Foto:Divulgação

Para compreendê-la em sua totalidade, é fundamental destacar a representatividade feminina e sua importância como sustento e alento do povo que a promove e que estão inscritas numa das mais famosas letras que cantam o Círio: ‘Vós sois o lírio mimoso”. Em certo momento, diz a canção: ‘Ó Virgem Mãe Amorosa, fonte de amor e de fé”. Isso porque Maria garantiu a Jesus o alimento necessário para seu desenvolvimento e saudável crescimento. Assim, este simbolismo permanece muito presente nos dias de hoje, pois a festa do Círio de Nazaré é também explicada e contada por suas comidas típicas, que fazem todo o sentido quando preparadas e consumidas neste momento.

A despeito do fato de que pato no tucupi e maniçoba não tem dia, nem melhor momento para serem saboreadas, é durante a quadra nazarena, que parecem inclusive ganhar um sabor especial!

Desta feita, temos que o hábito alimentar que se consolida na cultura de um povo possui uma história e esta precisa ser contada. E se há palavra que resume as preparações cirianas esta palavra é mestiçagem. Sidiana Ferreira em sua tese de doutorado “A cozinha mestiça” explica que o pato no tucupi remonta às heranças indígenas dos diversos grupos que consumiam patos nativos chamados de ipecas. Posteriormente, com o advento das influências culturais europeias, o pato passa a ser assado e depois, utilizando-se uma segunda técnica, cozido em líquido (no caso o tucupi).

O consumo ancestral servia o pato assado e o tucupi em separado, consumidos unicamente com pimentas, passando a ganhar outros temperos e sabor mais próximo do que conhecemos hoje. Neste meio-tempo, o uso de marinadas com alho, limão, cebola, pimentas também ajudavam a saborizar a carne da ave. Some-se à farinha de mandioca e às pimentas, o arroz, vindo da Ásia por meio das trocas comerciais viabilizadas pelas Grande Navegações.

De igual modo, a maniçoba, que nasce como alimento indígena a partir do consumo de folhas de mandioca cozidas acrescidas de pimenta. Este cozido de folhas era consumido com peixes, tartaruga ou mesmo carnes de caça (pacas, queixadas, dentre outros). Sua receita mais próxima da atual é acrescida de temperos como alho, cebola, cheiro-verde e também embutidos e carnes de variadas origens como porco e vaca. Animais que passaram a ser criados em cativeiro para consumo da população, num hábito trazido pelos colonizadores.

A própria maneira de cozinhar estas carnes muda: para os indígenas elas eram assadas no fogo direto ou defumadas sob varas. Depois, passam a ser refogadas, como feito nos pratos de carnes cozidas portugueses. Elementos como azeite, pimenta-do-reino e cominho demonstram as grandes incorporações culturais que nossas comidas típicas receberam tornando-se o símbolo de uma festa que é fonte de fé da maioria do povo paraense.

Para saber mais:

MACEDO, Sidiana da C. F. de. A cozinha mestiça: uma história da alimentação em Belém. Tese (Doutorado em História Social da Amazônia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém (PA), p.322. Agosto de 2016.

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