Nos últimos anos, diversas mostras no exterior têm dado destaque a indígenas do Brasil e da América Latina, aumentando, de forma inédita, a visibilidade de artistas historicamente apagados por galeristas e museus.
O mercado de arte está cada vez mais próximo das malocas. Nos últimos anos, diversas mostras no exterior têm dedicado programações aos povos indígenas do Brasil e da América Latina, aumentando, de forma inédita, a visibilidade de seus artistas, historicamente apagados por galeristas e museus.
Paralelamente a esse momento de alta procura pela arte indígena, a Europa debate como o colonialismo usurpou a cultura ameríndia e se apropriou de artefatos indevidamente. Um exemplo é o manto tupinambá feito no século 16 que atualmente está no Museu Nacional da Dinamarca, e será devolvido ao Brasil depois de três séculos no acervo da instituição. Um acerto de contas tardio.
Esse movimento de renovação no circuito mostra como arte e política são indissociáveis, podendo nortear exposições e alterar pensamentos coloniais de curadorias. É o caso da mostra Siamo Foresta, aberta na Fundação La Triennale, de Milão, em junho, que reúne obras de 27 artistas ligados à floresta amazônica. Entre eles, estão coletivos indígenas como o Grupo Yanomami, um dos mais conhecidos do país, que tem entre seus integrantes artistas como André Taniki, Sheroanawe Hakihiiwe, Vital Warasi e Joseca Mokahesi.
É a segunda mostra internacional da qual o coletivo participa em 2023, tendo em fevereiro sido destaque da exposição The Yanomami Struggle, no centro cultural The Shed, em Nova York. Ali, ao lado dos registros da fotógrafa Cláudia Andujar, que há 50 anos documentou as mudanças no território yanomami, os artistas levaram à maior cidade dos EUA os registros da luta de um povo que recentemente sofreu uma das piores tragédias humanitárias de sua história.
“Siamo Foresta encena um diálogo inédito entre pensadores e defensores da floresta, entre artistas indígenas e não indígenas”, destacou o antropólogo francês Bruce Albert, curador da exposição, em texto enviado à imprensa. “A mostra extrai sua inspiração fundadora de uma visão estética e política comum da floresta como um multiverso igualitário de seres vivos e oferece a alegoria de um mundo possível além de nosso antropocentrismo”.
Uma nova história da arte
O protagonismo de artistas indígenas contemporâneos tem atraído a atenção da comunidade internacional, que começa a enxergar com outros olhos a história da arte dos povos originários, conta o curador indígena Edson Kayapó, do povo Mebengokré, um dos responsáveis pela programação do núcleo das Histórias Indígenas do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp. “Nós, povos indígenas, sempre estivemos aqui produzindo arte. E agora que a sociedade está tendo oportunidade de visualizar isso com bastante profundidade, é importante trazer para o debate discussões que se arrastam há tempos”, diz.
Edson Kayapó chega a um ponto tocado por Albert quando explica que, na visão eurocêntrica, “o homem tinha que dominar a natureza porque ela é hostil”. Ele ressalta que a pandemia de covid-19 foi um dos fatores que ampliou as discussões sobre a codependência da natureza. “As pessoas tiveram que abrir os olhos a partir dessa crise mundial. Há estudos da ONU que falam da possibilidade de novas e piores pandemias se nós continuarmos devastando o sistema de biomas. Nós estamos diante de um grande problema climático: a terra está aquecida, então, o projeto humano está em crise”, completa o pesquisador.
Edson ressalta que o papel da arte indígena contemporânea vai além de mostrar os problemas socioambientais, sendo também um meio de preservar tradições e atos ritualísticos do cotidiano, algo que pode ser visto nas mirações do coletivo Mahku, do povo Huni Kuin que também participa de Siamo Foresta.
“O Mahku é uma resistência muito bem fundamentada, que surge a partir de um projeto artístico e também educacional dentro das comunidades indígenas. Eles dizem: ‘Nós vendemos terras para demarcar nossos territórios’, ‘Nós fazemos arte para combater drogas e qualquer outro vício dentro da comunidade'”, conta Edson Kayapó.
Uma das figuras mais conhecidas do Mahku, Cleiber Bane expõe em Siamo Foresta ao lado de nomes como Sheroanawe Hakihiiwe, do lado venezuelano do povo Yanomami, que teve mostra individual em cartaz nos meses de julho e agosto no Masp. Há também obras de Jaider Esbell, do povo Makuxi, um dos maiores nomes da arte indígena contemporânea brasileira.
Na última década, Esbell foi responsável por uma rede de apoio para artistas indígenas se estabelecerem no circuito e levou muitos deles no rastro de seu caminho meteórico. Além da responsabilidade de levar os saberes ancestrais para além das Terras Indígenas, como cantos e mitos de seu povo, o artista, natural da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, usou seu trabalho para denunciar crises no território, além de ser um crítico do próprio meio das artes.
Um dos destaques da 34ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, Jaider Esbell tirou a própria vida no auge de sua carreira, em novembro de 2021, na semana em que expôs suas obras no pavilhão. Suas telas foram cobertas por panos pretos. Foi um choque não só para as comunidades artística e indígena, mas um alerta sobre os processos do mercado da arte.
Criou-se, então, a Galeria de Arte Jaider Esbell, em Boa Vista (RR), que administra o espólio do artista e mantém vivo seu legado. No ano seguinte, em 2022, o trabalho de Esbell foi destaque na mostra Le Vivants, uma coletiva com artistas ameríndios em Lille, na França, além de algumas obras serem adquiridas por museus pelo mundo, como o Centre Georges Pompidou, em Paris.
Bancos indígenas no Japão
Para além do caráter político das obras, o alinhamento entre estética e cosmologia é uma marca muito presente em trabalhos de artistas indígenas, como relata o escultor Mayawari Mehinako, da Aldeia Kaupüna, no Xingu, que viajou em 2019 ao Japão para abrir a exposição da coleção BËI: Bancos Indígenas do Brasil. Peças desse tipo viraram objetos de desejo da classe média intelectualizada brasileira e custam em média na faixa de R$ 5 mil o exemplar.
Com exemplares de 43 povos originários do Brasil, a coleção BËI virou “uma forma de divulgar a cultura indígena milenar”, explica Mayawari, sobre como um banco indígena é um objeto que transcende o caráter utilitário da peça. “Não são peças decorativas, elas são [associadas à] cosmologia, [pois existe um momento específico] para o uso de cada banco. Nossa vida tem uma forte relação com a natureza. Existem animais que são exclusivos do trono do cacique, figuras para os cantores, pajés e as mulheres”.
Estimulado pelo pai, também autor de bancos, a esculpir para preservar a imagem de espécies ameaçadas, como pássaros, cobras e o tatu-canastra, o maior tatu do mundo, Mayawari faz a ponte entre os colecionadores e a aldeia. Graças a seu papel de intermediador, foram feitas várias obras de infraestrutura em sua comunidade nos últimos anos, como a construção de um posto de saúde. O artista conta também que é planejada a construção de uma escola na aldeia, além de projetos que buscam incentivar trabalhos manuais como a criação de bancos, cerâmica e da cestaria. É só o começo”, diz ele.
Segundo o diretor da BËI, Tomás Alvim, já estão programadas mais exposições internacionais da coleção para o próximo ano, em países como Portugal e Espanha. Já a marchand Carmo Johnson, que trabalha com o coletivo Mahku, conta que o grupo será responsável por um grande mural na fachada principal da Bienal de Arte de Veneza deste ano. Um espaço disputado por artistas do mundo inteiro que abre as portas para um novo panorama na história da arte.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Matheus Lopes Quirino.