Patrimônios imateriais: sete manifestações culturais da Amazônia registrados pelo Iphan

O patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente

Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas).

O patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. O Portal Amazônia preparou uma matéria com sete patrimônios imateriais da região amazônica:

Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi (Amapá)

A Arte Kusiwa é um sistema de representação gráfico próprio dos povos indígenas Wajãpi, do Amapá, que sintetiza seu modo particular de conhecer, conceber e agir sobre o universo. Como patrimônio imaterial, a Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi foi inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão, em 2002. No ano seguinte, recebeu da Unesco o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A Terra Indígena Wajãpi – demarcada e homologada em 1996 – é uma área muito preservada, onde vivem cerca de 1,1 mil indigenas, em 48 aldeias. Essa arte está vinculada à organização social, com uso adequado da terra indígena e o conhecimento tradicional. Os indígenas usam composições de padrões Kusiwa nas costas, na face e nos braços. A pintura é para todos os dias e quando os adultos se pintam, os jovens aprendem a fazer composições de kusiwarã no corpo.

Os Wajãpi do Amapá constituem um grupo remanescente de um povo outrora muito mais numeroso, subdividido em vários grupos independentes e cuja população total foi estimada em cerca de 6 mil pessoas no começo do século XIX. Esta etnia tem origem em um complexo cultural maior, de tradição e língua tupi-guarani, hoje representado por diversos povos, distribuídos entre vários estados do Brasil e países adjacentes. Até o século XVII, os Wajãpi viviam ao sul do rio Amazonas, numa região próxima da área até hoje ocupada pelos Asurini, Araweté e outros, todos falantes de variantes dessa mesma família linguística.

Mantém-se uma conexão historicamente importante com os grupos Wajãpi e Emerillon (ou Teko), que vivem na Guiana Francesa, e com os Zo´é, do norte do Pará, com os quais os Wajãpi do Amapá compartilham algumas tradições. Entretanto, mesmo variantes de uma mesma família linguística, nem todas as línguas faladas por esses grupos são mutuamente compreensíveis, justamente por expressarem evoluções históricas particulares com evidentes reflexos na diferenciação de suas sociocosmologias.

Salvaguarda

O Plano de Salvaguarda incluiu a implantação e estruturação do Centro de Formação e Documentação Wajãpi (Centro de Referência localizado na Terra Indígena Wajãpi. Ações de salvaguarda executadas por meio do Projeto Pontão de Cultura Arte e Vida dos Povos Indígenas do Amapá e Norte do Pará em parceria com o Instituto de Pesquisa e Educação Indígena (Iepé): capacitação e formação de documentaristas e pesquisadores indígenas; constituição de acervo para o Centro de Formação e Documentação Wajãpi; realização de inventários participativos, produção coletiva e realização da exposição A roça e o Kahbe: a produção de farinha de mandioca no Oiapoque, no Museu Kuahi dos Povos Indígenas do Oiapoque; produção e impressão de publicação de autoria dos pesquisadores Wajãpi, intitulada Ka’a rewarã, dentre várias outras publicações na língua Wajãpi. 

Círio de Nossa Senhora de Nazaré (Pará)

O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma celebração religiosa que ocorre em Belém (PA), inscrita no Livro das Celebrações, em 2004. Os festejos envolvem vários rituais de devoção religiosa e expressões culturais, e reúnem devotos, turistas e curiosos de todas as partes do Brasil e de países estrangeiros. Acontecem em vários municípios paraenses – Acará, Curuçá, Parauapebas, São João, entre outros – onde se cultua a festividade de Nossa Senhora de Nazaré. Instituída em 1793, é uma celebração constituída por vários rituais de devoção religiosa e expressões culturais, cujo clímax ocorre na procissão do Círio, no segundo domingo de outubro.

No Pará, o Círio é o grande momento anual de demonstração de devoção e solidariedade, de reiteração de laços familiares, assim como de manifestação social e política. Reconta, por meio de seu cerimonial religioso, a lenda que envolve o achado, em 1700, da imagem de Nossa Senhora de Nazaré por um caboclo denominado Plácido. Os elementos sagrados e profanos que marcam a festa configuram uma face múltipla, a que estão associadas diferentes significações decorrentes da diversidade das formas de inserção no evento, da apropriação simbólica e da diferenciação social dos participantes. A relevância do Círio de Nazaré como manifestação cultural pode ser reconhecida no longo e dinâmico processo que reitera e constrói essa celebração há mais de 200 anos.

As festividades – a chamada quadra nazarena – começam bem antes da procissão principal, realizada no segundo domingo de outubro, e se prolongam durante 15 dias. Da procissão propriamente dita, que corresponde ao traslado da imagem de Nossa Senhora de Nazaré da Catedral da Sé, no bairro da Cidade Velha, local em que Belém nasceu, até a Praça Santuário, no bairro de Nazaré. O percurso, de cerca de cinco quilômetros, é feito nos limites da área mais antiga e mais urbanizada da cidade de Belém, passando pela rua Padre Champagnat, pela avenida Portugal, pelo boulevard Castilhos França, e pelas avenidas Presidente Vargas e Nazaré.

Patrimônio Cultural da Humanidade

Essa celebração foi inscrita na Lista Representativa do Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco, em dezembro de 2013, durante a 8a. seção do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, realizada em Baku (capital do Azerbaijão). Considerado uma das maiores concentrações religiosas do mundo, o Círio tem como ponto alto a procissão da qual participam mais de dois milhões de pessoas do Estado e de diversas partes do Brasil. Os paraenses consideram essa festa um grande momento anual de demonstração de devoção e solidariedade, de reiteração de laços familiares e manifestação social e política. 

Foto: Divulgação

Tambor de Crioula do Maranhão (Maranhão)

O Tambor de Crioula do Maranhão é uma forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Seja ao ar livre, nas praças, no interior de terreiros, ou associado a outros eventos e manifestações, é realizado sem local específico ou calendário pré-fixado e praticado especialmente em louvor a São Benedito. Essa manifestação afrobrasileira ocorre na maioria dos municípios do Maranhão, envolvendo uma dança circular feminina, canto e percussão de tambores. Dela participam as coreiras ou dançadeiras, conduzidas pelo ritmo intenso dos tambores e pelo influxo das toadas evocadas por tocadores e cantadores, culminando na punga ou umbigada – gesto característico, entendido como saudação e convite.

Inscrito no Livro das Formas de Expressão, em 2007, esse bem imaterial inclui-se entre as expressões do que se convencionou chamar de samba, derivadas, originalmente, do batuque, assim como o jongo no Sudeste, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o coco no Nordeste e algumas modalidades do samba carioca. Além de sua origem comum, constatam-se, entre essas expressões do samba, traços convergentes na polirritmia dos tambores, no ritmo sincopado, nos principais movimentos coreográficos e na umbigada.

Praticado livremente, seja como divertimento ou em devoção a São Benedito, o Tambor de Crioula não tem local definido, nem época fixa de apresentação, embora se observe uma maior ocorrência desse evento durante o Carnaval e nas manifestações de Bumba-meu-boi. Trata-se de um referencial de identidade e resistência cultural dos negros maranhenses, que compartilham um passado comum. Os elementos rituais do Tambor permanecem vivos e presentes, propiciando o exercício dos vínculos de pertencimento e a reiteração de valores culturais afro-brasileiros.

A dança do tambor de Crioula, normalmente executada só pelas mulheres, apresenta coreografia bastante livre e variada. Uma dançante de cada vez, faz evoluções diante dos tambozeiros, enquanto as demais, completando a roda entre tocadores e cantadores, fazem pequenos movimentos para a esquerda e a direita; esperando a vez de receber a punga e ir substituir a que está no meio. A punga é dada geralmente no abdômen, no tórax, ou passada com as mãos, numa espécie de cumprimento. Quando a coreira que está dançando quer ser substituída, vai em direção a uma companheira e aplica-lhe a punga. A que recebe, vai ao centro e dança para cada um dos tocadores, requebrando-se em frente do tambor grande, do meião e o pequeno, e repete tudo de novo até procurar uma substituta. 

Foto: Iphan/Reprodução

Bumba meu boi (Maranhão)

O Bumba meu boi do Maranhão é uma celebração múltipla que congrega diversos bens culturais associados, divididos entre plano expressivo, composto pelas performances dramáticas, musicais e coreográficas, e o plano material, composto pelos artesanatos, como os bordados do boi, confecção de instrumentos musicais artesanais, entre outros. Em todo seu universo, destaca-se também a riqueza das tramas e personagens. O Complexo Cultural do Bumba meu boi do Maranhão foi inscrito no Livro de Registro de Celebrações, em 2011. Em 2019, a manifestação popular recebeu da Unesco o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

Profundamente enraizado no cristianismo e, em especial, no catolicismo popular, o bumba meu boi envolve a devoção aos santos juninos São João, São Pedro e São Marçal, que mobilizam promessas e marcam algumas datas comemorativas. Os cultos religiosos afro-brasileiros do Maranhão, como o Tambor de Mina e o Terecô, também estão presentes nessa celebração, uma vez que ocorre o sincretismo entre os santos juninos e os orixás, voduns e encantados que requisitam um boi como obrigação espiritual. O bumba meu boi é uma festa tradicional em que a figura do boi é o elemento central, porém reúne diversas outras manifestações culturais e assim se configura como um vasto “complexo cultural”.

Muitas vezes definido como um folguedo popular, o bumba meu boi extrapola o aspecto lúdico da brincadeira para fazer sentido como uma grande celebração em cujo centro gravitacional encontram-se o boi, o seu ciclo vital e o universo místico-religioso. É vivenciado pelos brincantes ao longo de todo o ano. As apresentações dos Bois ocorrem em todo o estado do Maranhão e concentram-se durante os festejos juninos. Seu ciclo festivo e de apresentações pode ser apreendido em quatro etapas: os ensaios, o batismo do boi, as apresentações e a morte. Comporta diversos estilos de brincar – chamados de sotaques – sem que, contudo, se tornem manifestações distintas.

Em geral, dividem-se os sotaques em cinco – baixada, matraca, zabumba, costa-de-mão e orquestra – contudo, estes estilos não são os únicos e existem ainda muitas variações, assim como os bois alternativos. Alguns aspectos intrinsecamente relacionados à celebração são o boi, a festa, os rituais, a devoção aos santos associados à manifestação, as músicas, as danças, as performances dramáticas, os personagens, os artesanatos e demais ofícios, os instrumentos, os diversos estilos (sotaques) de brincar o bumba meu boi e o caráter lúdico.

Nessa grande celebração cultural se articulam várias formas de expressão e saberes. e se confundem fé, festa e arte, em uma mistura de devoção, crenças, mitos, alegria, cores, dança, música, teatro e artesanato, entre outros elementos. Considerado a mais importante manifestação da cultura popular do Estado, tem seu ciclo festivo dividido em quatro etapas: os ensaios, o batismo, as apresentações públicas ou brincadas, e a morte. 

Foto: Divulgação

Os Saberes e Práticas Associados ao Modo de Fazer Bonecas Karajá (Tocantins)

Os Saberes e Práticas Associados ao Modo de Fazer Bonecas Karajá – patrimônio imaterial inscrito pelo Iphan, em 2012, no Livro de Registro dos Saberes – são uma referência cultural significativa para o povo Karajá e representam, muitas vezes, a única ou a mais importante fonte de renda das famílias. Atualmente, a confecção dessas figuras de cerâmica, denominadas na língua nativa de ritxòkò (na ala feminina) e/ou ritxòò (na ala masculina), é uma atividade exclusiva das mulheres e envolve técnicas e modos de fazer considerados tradicionais e transmitidos de geração em geração. Mais do que objetos meramente lúdicos, as ritxòkò são consideradas representações culturais que comportam significados sociais profundos, reproduzindo o ordenamento sociocultural e familiar dos Karajá.

Com motivos mitológicos, de rituais, da vida cotidiana e da fauna, as bonecas karajá são importantes instrumentos de socialização das crianças que se vêem nesses objetos e aprendem a ser Karajá, reebem ensinamentos, conhecem as técnicas e saberes associados à sua confecção e usos. Por representarem cenas do cotidiano e dos ciclos rituais, elas portam e articulam sistemas de significação da cultura Karajá. A pintura e a decoração das cerâmicas estão associadas, respectivamente, à pintura corporal dos Karajá e às peças de vestuário e adorno consideradas tradicionais. Indicativos de categorias de gênero, idade e estatuto social, a pintura e os adereços complementam a representação figurativa das bonecas, que identificam então “o Karajá” homem ou mulher, solteiro ou casado, com todos os atributos que “a cultura” cria para distinguir convencionalmente essas categorias.

O processo de confecção envolve o uso de três matérias-primas básicas: a argila ou o barro – suù (matéria-prima principal), a cinza (funciona como antiplástico), a água (umedece a mistura proveniente do barro e da cinza). Apesar de guardar algumas especificidades conforme as aldeias de Santa Isabel do Morro ou de Buridina, o modo de fazer ritxòkò consiste, basicamente, na extração do barro, preparação do barro, modelagem das figuras, queima e pintura. Enquanto o processo (criativo) ocorre por meio de um jogo de elaboração e variação de formas e conteúdos determinado pela experiência, a habilidade técnica e a preferência estética da ceramista pela combinação dos motivos temáticos e diversos padrões de grafismo aplicados, a função do objeto, o acesso às matérias-primas e aos recursos financeiros para compra de materiais, a exigência do mercado interno e/ou externo às aldeias, entre outros. 

Foto: Iphan/Reprodução

Modos de fazer cuias do Baixo Amazonas (Pará)

Os Modos de Fazer Cuias do Baixo Amazonas, no Pará, recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro e foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes em 2015. A prática artesanal de fazer cuias, desenvolvida entre comunidades indígenas da região há mais de dois séculos, é um ofício praticado atualmente por mulheres de comunidades ribeirinhas. O pedido de registro, apresentado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/Iphan) ressaltou as técnicas e o conhecimento utilizados para confeccionar este objeto que agregou novos elementos e significados ao longo dos tempos.

Os saberes relacionados à produção e utilização de cuias fazem parte das complexas dinâmicas de colonização e ocupação do espaço amazônico, e estão relacionados ao aproveitamento de recursos naturais disponíveis nessa região. As cuias pintadas, diferente das produzidas com incisões, foram introduzidas no repertório estético das artesãs no século XX, padrão incorporado em grande parte da ornamentação considerada tradicional.

Essa expressão cultural de longa continuidade histórica se encontra em constante processo de reelaboração. As populações ribeirinhas locais usam as cuias para pegar água do rio, tomar banho, cozinhar, consumir líquidos e outros alimentos, tirar água da canoa, decorar as paredes das casas como vasos de plantas, etc. Diversos produtos são confeccionados com as técnicas de produção da cuia: fruteiras, copos, jarras, vasos, travessas, braceletes, farinheiras, petisqueiras, entre outros objetos. 

Foto: Reprodução/Iphan

Sistema Agrícula Tradicional do Rio Negro (Amazonas)

O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro é entendido como um conjunto estruturado, formado por elementos interdependentes: as plantas cultivadas, os espaços, as redes sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas e os direitos. Sua inscrição no Livro de Registro dos Saberes foi realizada em 2010. As especificidades do Sistema são as riquezas dos saberes, a diversidade das plantas, as redes de circulação, a autonomia das famílias, além da sustentabilidade do modo de produzir que garante a conservação da floresta.

Esse bem cultural está ancorado no cultivo da mandioca brava (Manihot esculenta) e apresenta, como base social, os mais de 22 povos indígenas, representantes das famílias linguísticas Tukano Oriental, Aruak e Maku (não identificadas), localizados ao longo do rio Negro em um território que abrange os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, até a fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. A Bacia do Rio Negro é formada por um mosaico de paisagens naturais que abrange a floresta de terra firme, campina, vegetação de igapó e chavascal, com uma diversidade que repercute na vida da população, especialmente nas atividades de caça, pesca, agricultura e na coleta de materiais para fabricação de artefatos e de malocas.

Os povos indígenas que habitam a região noroeste do Amazonas – ao longo da calha do rio Negro e das bacias hidrográficas tributárias -detêm o conhecimento sobre o manejo florestal e os locais apropriados para cultivar, coletar, pescar e caçar, formando um conjunto de saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano. O Sistema acontece em um contexto multiétnico e multilinguístico em que os grupos indígenas compartilham formas de transmissão e circulação de saberes, práticas, serviços ambientais e produtos. É possível identificá-lo, uma vez que ele é elaborado, constantemente, pelas pessoas que o vivenciam. 

Foto: Reprodução/Iphan

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