Liberação da cana na Amazônia é “desnecessária e perigosa”, alerta professor da USP

O presidente Jair Bolsonaro revogou no início de novembro um decreto que restringia o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia. O Decreto 6.961, de 17 de setembro de 2009, estabelecia o Zoneamento Agroecológico (ZAE) da cana-de-açúcar no Brasil, com implementação de regras de sustentabilidade e exclusão dos biomas Amazônia e Pantanal como áreas adequadas ao plantio. Apesar de não proibir explicitamente a produção, o decreto impedia a concessão de financiamento público para o desenvolvimento da cana fora desse ZAE; o que, na prática, inviabilizava a expansão da cultura sobre esses dois biomas. Funcionou assim por dez anos.

Foto:Daniel Ribeiro/ISA

O Decreto 10.084, assinado por Bolsonaro no último dia 5, revoga completamente o ZAE, eliminando todas as condicionantes de sustentabilidade que ele impunha à produção de cana-de-açúcar no Brasil — incluindo a proteção à Amazônia e ao Pantanal. A justificativa apresentada pelo governo foi de que a sustentabilidade da produção já é garantida por outros instrumentos legais, como o Código Florestal e o Renovabio, tornando o ZAE desnecessário. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o objetivo é “permitir o retorno de investimentos no setor sucroenergético”.

A decisão foi criticada por pesquisadores e ambientalistas. Para o professor Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências (IB) da USP e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT do Bioetanol), trata-se de uma medida “desnecessária e perigosa”. “Plantar cana na Amazônia é não somente um erro, mas uma ação perigosa que pode levar à perda de biodiversidade e, no longo prazo, prejudicar toda a agricultura de larga escala no Brasil e na Argentina”, avalia o pesquisador, em entrevista ao Jornal da USP.

Leia a íntegra da entrevista abaixo:

Qual é o sentimento do senhor com relação a essa decisão do governo de autorizar o plantio de cana na Amazônia?

A decisão é desnecessária e perigosa. Em 2017 foi demonstrado por um grupo de cientistas dos Estados Unidos, Brasil e Inglaterra que há terra suficiente no Brasil para a expansão da cana sem que seja preciso avançar sobre qualquer bioma preservado ou área de produção de alimentos até 2045. (O estudo foi publicado na revista Nature Climate Change.)

A cana deve ser vista como uma ameaça à Amazônia? Porquê?

Hoje as variedades de cana existentes no Brasil são mais adaptadas ao Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil e provavelmente não se dariam bem na Amazônia. Mas em longo prazo novas variedades poderão se adaptar à região, fazendo da cana uma cultura agrícola que poderá ajudar a devastar a Amazônia. Plantar cana na Amazônia não é somente um erro, mas uma ação perigosa que pode levar à perda de biodiversidade e, no longo prazo, prejudicar toda a agricultura de larga escala no Brasil e na Argentina. Isto por causa do efeito que a Amazônia exerce no equilíbrio climático da América do Sul.

A proibição era um empecilho ao aumento da produção de etanol no Brasil?

Não. Já foi demonstrado que no Brasil há área suficiente para a expansão da cana sem necessidade de avanço sobre biomas preservados, em especial a Amazônia. Também não há necessidade de avançar sobre áreas de produção de alimentos, considerando a expansão esperada desse setor até 2045. Portanto, não há necessidade de colocar a cultura de cana na região Norte do Brasil. Temos aumentado a sustentabilidade da cana através de incrementos de produtividade e com o desenvolvimento de novas tecnologias, como o etanol de segunda geração. A expansão também é possível. Usando o Zoneamento Agroecológico, o Código Florestal e o Renovabio, sem entrar na Amazônia, o etanol brasileiro tem potencial para substituir entre 4% e 14% do consumo de petróleo cru do mundo, evitando emissões globais de até 6% do CO2 mundial, com base em 2014.

Foto:Maria Leonor de Calasans / IEA

As condições ambientais da Amazônia são propícias para o plantio de cana?

Não, se considerarmos as características das variedades de cana existentes no Brasil. Na Amazônia o clima é muito úmido durante todo o ano. As variedades que temos necessitam de um período de seca leve e temperatura mais baixa para a sua maturação, período em que a planta inicia o depósito de açúcares, cuja metade é comercializada diretamente e a outra metade é usada para a produção de etanol. Assim, plantações de cana com as variedades atuais, na Amazônia, provavelmente seriam menos produtivas. Isto sem falar da possibilidade de aparecimento de novas doenças na cana, para as quais não temos controle. Como há outras áreas a que esta cultura se adapta melhor, não há vantagens em mover a cana para a região amazônica.

O Código Florestal e o Renovabio são suficientes para garantir a sustentabilidade da produção de cana na Amazônia?

Hoje, levar a cana para a Amazônia seria uma ação com baixíssima sustentabilidade, mesmo considerando as vantagens do Código Florestal e do Renovabio. A cana já apresenta boa sustentabilidade no Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil. Com o avanço do etanol de segunda geração, a produtividade de etanol pode aumentar em até 40%, diminuindo a necessidade de usar mais espaço e tornando a cultura ainda mais sustentável. Levar a cana para a Amazônia seria desperdício de dinheiro; uma atitude desnecessária que desviaria os investimentos que poderiam ser feitos nas regiões hoje produtoras de cana. No longo prazo, degradar a floresta amazônica pode significar perdas para a agricultura do resto do Brasil. Assim, levar a cana ou qualquer outra cultura agrícola de larga escala para a Amazônia significa, obrigatoriamente, uma perda de sustentabilidade para o Brasil.

Qual sua opinião sobre as justificativas apresentadas pelo governo federal para essa decisão?

A substituição do Zoneamento Agroecológico por um sistema que se baseia nas forças do Código Florestal e do Renovabio significa a mudança de uma medida restritiva completa — ou seja, que excluía todos os estados amazônicos (Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima, Pará e Amapá) ou partes de Estados que abrigam parte do bioma Amazônia (Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e Goiás) — por um sistema parcialmente permissivo. Neste caso, o agricultor poderia plantar cana nesses Estados e decidir se adere ou não ao Renovabio. Mas ainda fica restrito ao Código Florestal, que permite desmatamento com a preservação de uma parte da propriedade. Portanto, não se pode dizer que a transição levará a um impacto ambiental muito menor. Isso porque o ZAE impossibilitava o plantio de cana na Amazônia como um todo, mas o Código Florestal permite isso. Não é que os dois mecanismos sejam ineficazes, mas seria muito mais eficiente, do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, manter o ZAE ao mesmo tempo em que o Código Florestal e o Renovabio garantiriam maior sustentabilidade para a produção do etanol (e do açúcar) de cana nas demais regiões do País.

Como essa decisão pode influenciar a reputação do bioetanol brasileiro no exterior e, consequentemente, o potencial de mercado dele como commodity?

A ética socioambiental evoluiu muito nos países desenvolvidos. Eles estão muito atentos a todos os movimentos que possam afetar o meio ambiente em geral no mundo. Nesse cenário, a produção de etanol de cana foi alvo de críticas por vários anos devido à forma como ela afetaria biomas preservados. Os cientistas brasileiros têm feito um esforço enorme para explicar que o sistema de produção de biocombustíveis de cana é, sim, sustentável; que ele pode produzir cada vez mais etanol através do ganho de produtividade e de novas tecnologias e, com isto, diminuir a pressão sobre biomas preservados importantes. Até hoje, devido às características da cana e também ao Zoneamento Agroecológico, plantações de cana em larga escala não entraram na Amazônia. Como vimos recentemente, a comunidade internacional é extremamente sensível à forma como o Brasil lida com a região amazônica. Uma liberação de entrada da cana na região pode ter, sim, efeito negativo na reputação do etanol brasileiro, fornecendo argumentos aos críticos constantes do etanol de cana.

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