Eunice Michiles: primeira mulher no Senado brasileiro defendia a Amazônia

Desde o período imperial até meados da ditadura militar, o Senado era composto exclusivamente por homens. Eunice mudou a composição em 1979. 

Não é incomum atualmente observar mulheres em cargos considerados de alto nível: ministras, juízas, empresárias, diretoras, engenheiras e diversas outras áreas de atuação.

Mas, cerca de meio século atrás, as coisas eram diferentes na Amazônia e no Brasil de modo geral. Por um século e meio, desde o período imperial até meados da ditadura militar, a política, por exemplo, era feita exclusivamente por homens e nenhuma mulher havia ocupado o cargo de senadora da república na época.

Somente em 1979 um nome foi responsável por mudar esse cenário: Eunice Michiles. Recebida pelos parlamentares com flores e poesia, ela não foi eleita pela população no primeiro momento, mas alguns fatores contribuíram para que Eunice assumisse o cargo. Um deles foi a morte de João Bosco, de quem ela era suplente.

Em uma sociedade em sua grande maioria machista e patriarcal, Eunice abriu portas e mostrou ser possível lutar – diretamente – pelos direitos das mulheres. Confira no Portal Amazônia a história da primeira mulher no Senado Federal:

Foto: Reprodução/Arquivo do Senado

Vida e início da carreira

Natural de São Paulo, Eunice construiu carreira e família no coração da Amazônia. O interesse pela política surgiu quando era casada com o então prefeito de Maués, município distante quase 260 quilômetros da capital do Amazonas.

Em 1974, já separada, elegeu-se como deputada estadual. Michiles ia tentar a reeleição em 1978, mas foi convencida pelo Arena (Aliança Renovadora Nacional) a se candidatar ao Senado.

De acordo com a Agência Senado, que mantém um acervo de fotos e documentos da época:

“Pelas regras da época, tanto a Arena quanto o MDB lançavam três candidatos ao Senado. A apuração se dividia em duas etapas. Primeiro, verificava-se qual partido havia somado mais votos. Depois, qual candidato do partido vencedor havia sido o mais votado. A Arena não desejava que Eunice vencesse. Queria apenas fazer frente à ousada e moderna estratégia do MDB de incluir uma mulher no trio que disputava o Senado. O candidato preferido da Arena era João Bosco de Lima, vice-governador do Amazonas. Os 33 mil votos de Eunice foram decisivos para a vitória dele”.

Agência Senado

Em troca de abrir mão da candidatura à reeleição como deputada estadual, Eunice seria nomeada como secretária estadual de Serviços Sociais. Assim aconteceu, porém Bosco faleceu e Eunice teve que assumir o cargo de Senadora.

Foto: Reprodução/Arquivo do Senado

Flores, chocolate e poesia

Além de ser a primeira figura feminina a ocupar o cargo, Eunice tomou posse fora de época. Na ocasião, foi recebida com aplausos dos colegas de trabalho, recebeu flores do então senador Paulo Brossard (RS), do partido de oposição, além de chocolate e algumas declamações de poesias.

Inibida no novo ambiente, Eunice Michiles se apresentou como uma mulher simples que estava na expectativa de ouvir e interpretar melhor as reivindicações das mulheres.

“Somos fruto de uma cultura patriarcal e machista, onde a mulher vive à sombra do homem e rende obediência ao pai, ao marido ou, na falta deste, ao filho mais velho. Em 1979, temos muito a melhorar”.

Declaração de Eunice, segundo arquivo da Agência Senado.

Em entrevista recente à Agência Senado, Eunice conta: Não deixou de ser uma discriminação, pois não se recebe homens assim. Mas foi uma discriminação muito simpática”.

Diploma expedido pela Justiça Eleitoral atesta que, por ter ficado em segundo lugar na eleição, Eunice Michiles é suplente de João Bosco. Foto: Reprodução/Arquivo do Senado

Pautas defendidas 

Dentre os assuntos que Michiles defendia no Senado, estavam principalmente direitos das mulheres, da família e conservação do meio ambiente.

Uma das primeiras propostas que apresentou buscava eliminar um artigo do Código Civil de 1916 que permitia ao homem anular o casamento e devolver a mulher aos pais caso descobrisse que ela não era mais virgem. 

“A virgindade era a marca maior de nossa conotação de objeto. Exige-se que um objeto, ao ser adquirido, seja zero quilômetro. Já com o homem era diferente. Quanto mais rodado, melhor. O tempo se encarregou de mudar conceitos e atitudes. A geração jovem não atribui à virgindade feminina o mesmo valor da geração passada. Assim, o dispositivo de nosso Código Civil é uma distorção entre o social e o jurídico e por isso precisa ser reformulado”,

justificou a senadora na época.

E defendeu outros vários projetos como: reduzir a jornada de trabalho para mulher com filhos, eliminar a possibilidade do homem casado em comunhão de bens contratar empréstimos e dar como garantia bens da família sem o consentimento da esposa.

Além disso, na ala ambiental, promovia debates sobre a Amazônia, defendia a educação ecológica nas escolas e apresentou o projeto que instituía o Dia Nacional de Defesa da Fauna.

No entanto, nenhum projeto criado pela Senadora foi aprovado nos oito anos de mandato. Alvo de assédio moral em diversos momentos, em uma ocasião foi acusada de apenas abordar “assuntos secundários”. Em outra, atrasada para uma votação (outros dois senadores também estavam), foi culpada por um colega de não aprovar um projeto de lei importante.

Enquanto alguns foram rejeitados imediatamente, outros foram ignorados e nem entraram em votação. As raras propostas que tiveram a aprovação dos senadores seriam derrubadas pelos deputados. 

Foto: Reprodução/Arquivo do Senado

Estereótipos

Por ter se tornado uma figura pública notável, jornais, revistas e emissoras de televisão faziam constantes reportagens sobre a aparência, roupas e modo de vida de Eunice.

Diferentemente do que faziam com senadores, matérias com entrevistas da senadora não eram voltadas para questões políticas e saiam no caderno de variedades. Sua aparência “muito conservada”, além do seu “estilo”, eram constantemente comentados. 

Eunice Michiles no chá de boas-vindas oferecido pelas mulheres dos senadores em 1979. Foto: Eunice Michiles/Arquivo pessoal

Atualmente

Após o mandato, ela ainda se candidatou novamente a deputada federal. Respaldada por uma bancada feminina, finalmente conseguiu aprovar uma série de direitos para as mulheres. Em 1999, ela se retirou da vida pública. Hoje, Eunice vive em Brasília.

A segunda senadora do Brasil foi Laélia de Alcântara (PMDB-AC), que tomou posse em 1981. A atual bancada feminina do Senado conta com 15 parlamentares. 

Confira entrevista de 2019 da Agência Senado com Eunice: 

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