Não existe antídoto ou tratamento específico para o veneno da raia de água doce, apesar de acidentes envolvendo ferroadas do animal serem comuns em rios amazônicos e de outras regiões. Um trabalho pioneiro conduzido no Instituto Butantan, em São Paulo, tem analisado o conjunto de toxinas produzido por esses animais para entender como elas agem e tentar encontrar métodos terapêuticos.
Uma das descobertas relevantes é que o veneno dos membros da família Potamotrygonidae, todos de água doce, é variável mesmo entre indivíduos de uma mesma espécie.
Enquanto a ferroada de raias jovens causa muita dor à vítima – o que, possivelmente, ajuda esses animais a afugentar predadores –, as toxinas inoculadas pelos indivíduos adultos têm ação necrosante, podendo auxiliar na caça de pequenos peixes, camarões e outros crustáceos.
“Existe uma pressão ambiental que leva à modificação da composição do veneno e de seu efeito toxicológico. Quando muda o ambiente, muda também o tipo de alimento e entra em ação uma pressão evolutiva que pode levar à mudança na composição das toxinas”, disse Carla Lima, vice-diretora do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada do Butantan.
A pesquisa foi desenvolvida por Lima e por Mônica Lopes-Ferreira, diretora do laboratório, no âmbito do Centro de Toxinas, Resposta-Imune e Sinalização Celular (CeTICS). Os resultados foram publicados na revista Toxicon.
O CeTICS, que tem Lopes-Ferreira como coordenadora de Difusão, é um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP e sediado no Butantan.
Segundo as pesquisadoras, embora o termo peçonha seja mais correto no caso das raias – animais equipados com um aparelho inoculador de toxinas, assim como as serpentes –, a palavra veneno é mais usada e coloquialmente aceita.
“Vários estudos foram realizados com veneno de ferrão e muco de raias de ambientes marinhos ou fluviais para comparar a toxicidade. Mas ainda são escassos os dados sobre a influência do sexo ou do estágio de maturação do animal sobre a composição e o efeito das toxinas”, disse Lopes-Ferreira.
“Investigamos se fatores como o sexo ou a maturação da espécie Potamotrygon rex influenciam a capacidade da peçonha de desenvolver inflamação aguda em camundongos. Nossos resultados sugerem que a nocicepção é induzida principalmente pelas toxinas produzidas por fêmeas jovens”, disse Lima.
Nocicepção é a recepção de estímulos aversivos, transmissão, modulação e percepção de estímulos agressivos. Receptores de danos são chamados de nociceptores. Os estímulos por eles recebidos são transmitidos pelo sistema nervoso periférico até o sistema nervoso central, onde são interpretados como dor. “Em contraste, o veneno das raias adultas é mais eficaz para produzir exsudação de proteínas”, disse Lima.
Exsudação se refere à saída de líquidos orgânicos por meio das paredes e membranas celulares, por lesão ou por inflamação.
“Portanto, nossos dados indicam que a composição do veneno de Potamotrygon rex é influenciada pelo estágio de maturação do animal. A produção de peptídeos e proteínas capazes de atuar nas interações endoteliais dos leucócitos e favorecer a infiltração de neutrófilos no tecido lesionado é modulada de acordo com a fase de desenvolvimento da raia”, disse Lopes-Ferreira.
Potamotrygon rex
O trabalho foi realizado com amostras de veneno coletadas em peixes capturados (e depois libertados) no Tocantins, por meio de uma colaboração com pesquisadoras da Universidade Federal do Tocantins (UFT), coautoras do artigo.
Todos os peixes pertenciam à espécie Potamotrygon rex, endêmica do Brasil e comum em águas do médio e alto Tocantins. Apesar disso, foi descrita pela ciência apenas em 2016. “Para verificar a toxicidade, veneno de raias infantes e adultas foi aplicado diretamente sobre a pele de camundongos anestesiados. As alterações decorrentes no tecido foram analisadas à luz do microscópio”, disse Lopes-Ferreira.
De acordo com as pesquisadoras, a peçonha das raias com até dois anos, especialmente das fêmeas, se mostrou mais potente e capaz de causar dor aguda pela presença de peptídeos com ação neuroativa.
“As raias jovens vivem em bandos, enterradas no lodo do fundo dos rios. De lá saem pouco e se alimentam de microcrustáceos que habitam o lodo. Seu veneno provoca ferimentos dolorosos. Acreditamos que isso ocorra para afugentar possíveis predadores”, disse Lima.
Aos dois anos as raias alcançam a maturação sexual, abandonam irmãos e irmãs e saem do ambiente protegido no fundo dos rios. Passam a viver na coluna d’água, em ambientes de águas mais ou menos turvas, e começam a caçar, levando daí por diante uma vida solitária.
“Nesse momento ocorre uma mudança na composição de toxinas. Os peptídeos que causam sensação de dor dão lugar a moléculas proteicas capazes de induzir lesões inflamatórias e desencadear a necrose dos tecidos”, disse Lima.
A maturação sexual, segundo o estudo, seria necessária para ocorrer essa alteração na composição da peçonha. Nesse sentido, mudanças bruscas no ambiente dos rios podem retardar o desenvolvimento das raias e a transformação das toxinas.
É o que pode ser observado, por exemplo, em peixes que vivem nos rios afetados pelo despejo de lama causado durante o desastre ambiental na barragem de Brumadinho (MG), ocorrido em janeiro passado.
“Uma alteração brusca no pH da água ou a transformação de água cristalina em turva podem afetar o amadurecimento das raias e seu arsenal de toxinas. Uma contaminação maciça também afetará a fonte de alimentação desses peixes, alterando a sua dieta”, disse Lopes-Ferreira.
A mudança na composição da peçonha, dependendo do estágio de vida ou do sexo, já era conhecida entre as serpentes. De acordo com as autoras, é a primeira vez que o mesmo fenômeno é constatado entre as raias, sejam marinhas ou fluviais.