‘Anna Karoline 3’: profissionais revivem em memórias a tragédia que matou 40 no Rio Amazonas

Foram quase 40 dias de buscas na região, sem rede de telecomunicações, numa área florestal que divide os estados do Amapá e o Pará

O dia 29 de fevereiro de 2020 ficou marcado na vida de sobreviventes, de familiares e amigos de quem morreu e também de quem trabalhou com o resgate de passageiros e tripulantes do navio Anna Karoline 3, que naufragou no Rio Amazonas, no Sul do Amapá, há exatamente um ano.

São com palavras como “dor”, “comoção” e “tragédia” que os profissionais que atuaram na operação se recordam do caso, que deixou 40 mortos, 51 sobreviventes e 2 desaparecidos, numa viagem que saiu do porto do município de Santana, a 17 quilômetros de Macapá, com destino à Santarém, no Pará.

Foram quase 40 dias de buscas na região, que é remota, sem rede de telecomunicações, numa área florestal que divide os estados do Amapá e o Pará.

A equipe da Rede Amazônica conversou com mergulhadores do Corpo de Bombeiros que integraram a operação de segurança pública, uma assistente social que acompanhou as buscas no local ao lado de familiares e amigos das vítimas, e ainda com um fotógrafo que registou os momentos de aflição sempre em que um corpo era encontrado nas águas turvas do Amazonas.

Navio Anna Karoline 3 foi içado do fundo do rio um mês após o naufrágio — Foto: GTA/Divulgação

Operação complexa

Entre os desafios encontrados pela equipe de mergulhadores estava a natureza. A forte maré e as águas turvas do Rio Amazonas não facilitavam o trabalho para chegar até os 12 metros de profundidade em que o navio se encontrava.

“O mergulho é cego. A gente não enxerga nada nesse Rio Amazonas. A gente faz um planejamento prévio, faz a descida e já tem que estar tudo mapeado na cabeça, porque não se enxerga nada”, relatou o sargento Alberto de Oliveira, de 39 anos, que atuou no local como mergulhador pelo Corpo de Bombeiros Militar (CBM) do Amapá.

O capitão Davidson Cordeiro, mergulhador de resgate, de 47 anos, chegou ao local um dia após o naufrágio e participou dos primeiros 7 dias das buscas. Ele detalhou que todos os dias a equipe esperava que a maré ficasse parada para que o mergulho pudesse ser feito com mais segurança.

“A força da água é muito grande. Ela impedia que a gente conseguisse chegar ao fundo de forma eficiente porque demandava muito esforço e consumo de ar comprimido, então esperávamos a maré parar para verificar se havia corpos presos dentro de camarotes, refeitórios, redário”, explicou Cordeiro.

Militares realizando buscas por vítimas do naufrágio do navio Anna Karoline 3, em março de 2020 — Foto: GTA/Divulgação

A aflição que emergia e submergia

Há 12 anos na função, foi o momento mais impactante da carreira do capitão Cordeiro.

“Muitas pessoas perderam a vida ali de forma trágica. A gente buscava não se envolver às pessoas, mas a gente percebia [a tristeza]… Teve um senhor que estava lá que perdeu filho, a cunhada, o neto… então é complicado. Pra mim, foi algo que ficou marcado pela complexidade da atuação e pela comoção em si”, relatou.

Os familiares das vítimas acompanhavam de longe, em uma balsa ancorada numa das margens do rio, cada dia de operação, na esperança de encontrar alguém, mesmo que sem vida.

Concentração é um fator importante no trabalho dos mergulhadores, e pela complexidade do naufrágio, desta vez não foi nada fácil. Oliveira descreveu que a equipe chegava a tentar fugir da pressão psicológica dos familiares das vítimas para garantir foco total.

“Nós víamos ali naquele momento que nós éramos a esperança daquelas pessoas, de encontrar seus entes queridos. Então a gente procurou trabalhar de uma forma que pudesse filtrar isso para que não interferisse nas nossas ações. Por isso ficávamos distante das balsas onde estavam os familiares das vítimas. Mas claro que ao final das buscas do dia sentíamos a tristeza deles”, contou.

Comandante do Grupo Tático Aéreo (GTA), Ajaje Rachid permaneceu na área do naufrágio nos primeiros 4 dias de buscas. Ele se recorda até hoje do desespero no semblante dos familiares pela falta de notícias das vítimas.

“As pessoas perguntavam se poderiam entrar na aeronave para fazer algumas buscas, de forma bastante emocionada. E a gente sem poder fazer algo para diminuir aquela dor. A gente vê como somos frágeis. Isso me fez crescer como ser humano”, declarou.

ambém por quatro intensos dias, a assistente social Elisabeth Aragão, de 39 anos, trabalhou no local do naufrágio. Ela lembra de ter encontrado algumas pessoas agressivas, revoltadas e outras em estado de pânico.

Ela e um psicólogo da prefeitura de Santana ficaram na balsa onde estavam os parentes das vítimas. Sempre que um corpo era puxado, ela afirma que a tensão dos familiares se manifestava em forma de desespero.

“Quando os mergulhadores conseguiam puxar algum corpo e os familiares viam, eles queriam desesperadamente ir até lá para ver. Então a todo momento tínhamos que estar perto deles para acalmar. Tinha gente que falava que queria passar para o mato, porque eles acreditavam que os familiares estavam perdidos no mato. Era impossível não sermos humanos naquele momento”, lembrou.

O naufrágio reuniu solidariedade e esforços de ambos os estados. A prefeitura de Almeirim, o mais próximo município paraense da área do naufrágio, também enviou equipes para atuar na operação.

Lukas Tavares, de 26 anos, trabalha desde 2018 com a fotografia e foi ao local no dia seguinte à tragédia para registrar o caso para a prefeitura de Almeirim. A missão era principalmente mostrar o que estava acontecendo. Uma experiência que nunca sairá do currículo e nem da memória dele.

“O que mais me impressionou foi a frieza com que eu encarei isso tudo, porque foi algo que eu nunca vivi e eu tinha pouca experiência, mas foi um trabalho importante para mostrar pra população da região o que estava acontecendo. Presenciei muitas cenas fortes, isso ficou por muito tempo na minha cabeça. Lembro disso como se fosse ontem. Aquilo ficou marcado em mim. Pra mim era como se fosse uma imagem de filme, ver todo aquele sofrimento, ansiedade das pessoas para encontrar alguém”, descreveu.

Área do naufrágio da embarcação Anna Karoline 3, entre o Amapá e o Pará, e longe de área urbana — Foto: Maksuel Martins/Secom

Aprendizados após 1 ano

O sargento Fábio Soares, de 33 anos, que também integrou a operação de mergulho, contou que ficou o sentimento de dever cumprido por ter ajudado com que quase todas as famílias realizassem um velório digno dos entes queridos.

“Por se tratar de uma tragédia, não se tem memórias muito boas. Mas o trabalho realizado por nós mergulhadores à procura dos corpos e devolver à família, essas são as melhores memórias, porque a família quer fazer um velório digno e ter as últimas memórias do ente querido”, afirmou.

O inquérito da Polícia Civil apontou que a embarcação estava com 70% de sobrecarga, o que foi um dos fatores que contribuíram para o naufrágio. Até hoje, ninguém foi responsabilizado pela tragédia.

Para o capitão Cordeiro, um ano após o naufrágio, ficou o aprendizado de nunca desprezar a segurança.

“Algumas tragédias são imprevisíveis, mas, quando a segurança está presente, os danos são amenizados. Desejo que nossas autoridades sejam mais atentas e mais rigorosas nas fiscalizações para que tragédias não voltem a ocorrer, pois, apesar de estarmos preparados, essas são situações em que esperamos não ter que atuar”, frisou.

O comandante Rachid também destacou a importância do cumprimento das normas de segurança para evitar episódios como este.

“Eu acho que todo acidente seja marítimo, aéreo ou terrestre pode ser evitado quando você cumpre as normas de segurança. Esse é o aprendizado que fica pra gente. Ficou a lição de ter mais prudência e não achar que nunca vai acontecer”, disse. 

Escrito por Victor Vidigal, Fabiana Figueiredo e John Pacheco

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Pará perde Mestre Laurentino; artista completaria 99 anos em janeiro de 2025

Natural da cidade de Ponta de Pedras, na Ilha do Marajó, ele era conhecido como o roqueiro mais antigo do Brasil.

Leia também

Publicidade