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Terça, 30 Abril 2024

Saiba como Castelo Branco e Médici conquistaram cidadania acreana sem nunca pisar no Estado

Um dos principais articuladores da Ditadura Militar, que deixou mais de 400 mortos e desaparecidos no Brasil, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco recebeu no Acre uma das maiores honrarias dadas pelo Poder Legislativo do estado, a cidadania acreana. Assim como ele, outro ditador homenageado no período foi o general Emílio Garrastazú Médici. Os dois, entretanto, nunca pisaram em solo acreano.

(ESPECIAL "60 ANOS DO GOLPE MILITAR": a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, desencadeou uma série de fatos que culminaram em um golpe de estado em 31 de março de 1964. O sucessor, João Goulart, foi deposto pelos militares com apoio de setores da sociedade, que temiam que ele desse um golpe de esquerda, coisa que seus partidários negam até hoje. O ambiente político se radicalizou, porque Jango prometia fazer as chamadas reformas de base na "lei ou na marra", com ajuda de sindicatos e de membros das Forças Armadas. Os militares prometiam entregar logo o poder aos civis, mas o país viveu uma ditadura que durou 21 anos, terminando em 1985).

O título de cidadania é uma honraria simbólica geralmente dada a pessoas de outros estados ou países com alguma ligação ou que contribuam para o desenvolvimento do local em que recebem a homenagem. No caso dos militares, além do fato de terem sido mandatários do país, não há nenhuma justificativa para que eles tenham sido agraciados.

Castelo Branco e Médici, ditadores foram homenageados no Acre. Foto: Reprodução/Arquivo Palácio do Planalto

Castelo Branco, que ocupou a presidência em 1964 e 1967, recebeu cidadania acreana através da Lei nº 48, de 1º de dezembro de 1965. Nos arquivos da Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) não consta o registro de quem teria sido o deputado responsável por conceder o título.

Já Médici, que esteve no poder entre 1969 e 1974, recebeu o título por indicação do deputado Carlos Simão (Arena). A lei que sacramentou a outorga foi a de nº 509, de 24 de outubro de 1973.

Os dois ditadores foram homenageados ainda em outras ocasiões no estado. O segundo aeroporto de Rio Branco construído em 1964, por exemplo, levava o nome de Médici. Já Castelo Branco deu ainda nome a um bairro da capital acreana e o Parque Exposições Wildy Viana levou por anos o nome dele. A mudança só foi feita em 2017, mais de 30 após o fim da ditadura. 

Arquivos da Aleac mostram concessão de cidadania. Foto: Reprodução/Assembleia Legislativa do Acre

Responsável por morte de estudantes foi homenageado no Acre

Outros nomes ligados à Ditadura Militar também foram homenageados pelos parlamentares acreanos durante os anos de chumbo, entre eles o ministro da Educação das administrações do general Costa e Silva e da Junta Militar de 1969, Paulo de Tarso Dutra.

O criador do Mobral e um dos responsáveis por diversos conflitos que terminaram com a morte de diversos estudantes como o carioca Edson Luís de Lima Souto, nos episódios conhecidos como a 'Invasão do Calabouço', a Sexta-feira Sangrenta' e a 'Passeata dos Cem Mil'. Dutra foi ainda o responsável por revisar o texto do Ato Institucional número 5 (AI-5), que mergulhou o país em um dos períodos mais duros do regime.

MPF pediu anulação de homenagens a pessoas ligadas à Ditadura 

Em outubro de 2023, o Ministério Público Federal do Acre (MPF-AC) ingressou com uma ação civil pública pedindo pedindo à Justiça Federal para determinar à União, ao governo do Acre e prefeitura de Rio Branco a retirada de todas as homenagens a pessoas ligadas à ditadura militar.

Na época, o órgão pediu a instalação de comissões técnicas para mapear, analisar e promover a mudança nas nomenclaturas de ruas, edifícios e instituições públicas que homenageiem agentes públicos ou particulares que notoriamente tiveram comprometimento, direto ou indireto, com a prática de graves violações durante o regime civil-militar.

José Augusto de Araújo, primeiro governador eleito do Acre foi deposto em golpe de estado. Foto: Reprodução/Acervo histórico do Museu Universitário da Ufac

Ditadura Militar no Acre 

Em 1964, o Acre era um estado recém-criado. Depois de 50 anos de luta do movimento autonomista, o então território federal havia sido elevado a categoria de estado em 1962. O primeiro governador eleito democraticamente havia assumido o cargo em março de 63.

A vitória de José Augusto de Araújo, um político até então relativamente desconhecido foi uma surpresa. Araújo, que fazia parte do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) o mesmo do presidente João Goulart, havia concorrido contra José Guiomard Santos, do PSD, um dos articuladores da elevação do território a estado.

Em pouco tempo, porém, o clima de celebração ficou para trás. Desde o começo de seu mandato, o novo governador enfrentou oposição até mesmo de aliados por causa de suas ideias consideradas progressistas para a época.

Ao Grupo Rede Amazônica, em 2014, a ex-primeira-dama, Maria Lúcia de Araújo, viúva de José Augusto falou sobre o marido. "Era uma pessoa que lia muito e queria dar o melhor que pudesse para o estado dele", disse.

O Golpe Militar acabou sendo a oportunidade para os opositores do governador acreano, que passou a ser denunciado aos militares como 'subversivo' e 'comunista'. A situação ficou insustentável até que no dia 8 de maio de 1964, José Augusto foi forçado a renunciar pelo comandante da 4ª Companhia Militar, capitão Edgar Pedreira de Cerqueira Filho, durante o episódio que ficou conhecido como 'Cerco ao Palácio'.

Comandados por Cerqueira, os militares cercaram o Palácio Rio Branco e exigiam que o governador renunciasse ou iriam invadir o local. Maria Lúcia conta que aliados do governador ainda tentaram convencê-lo a resistir. No entanto, temendo que houvesse derramamento de sangue, ele recuou.

Governador do Acre, José Augusto de Araújo e presidente João Goulart. Foto: Reprodução/Acervo histórico do Museu Universitário da Ufac

"Naquele tempo tínhamos a guarda territorial, eram poucos homens e que não podiam nunca confrontar o pessoal do exército com metralhadoras, quando o estado não tinha nem arma para revidar. Aí, ele disse: 'vai correr sangue, então para que lutar?'. Aí resolveu renunciar", lembrou a viúva. O governador, porém, assinou o documento apenas com suas iniciais, um forma de deixar claro que estava sendo obrigado a tomar aquela decisão.

A renúncia não foi suficiente para Cerqueira. Por isso, o governador eleito e a primeira-dama tiveram de deixar o estado.

Duas situações curiosas ocorridas fazem com que viúva desconfie que o Cerqueira agiu no Acre sem o aval do comando militar. A primeira foi ao chegar em Porto Velho (RO). "Um coronel nos perguntou o que havia acontecido, porque a comunicação foi toda fechada. Ele vinha para assumir o governo, mas o Cerqueira se apressou e exigiu que os deputados votassem nele, segundo me contaram. Um golpe dentro do golpe", comenta.

Já no Rio de Janeiro onde iriam viver nos anos seguintes, o casal foi recebido pelo general Homem de Carvalho e a pedido do general Humberto Castelo Branco, que ocupava a Presidência, teve que fazer um relatório sobre a situação ocorrida no Acre.

A situação acabou agravando a saúde já delicada de Araújo, que tinha problemas de coração. No dia 3 de abril de 1971, ele acabou falecendo no Hospital Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro.

*Por Yuri Marcel, do g1 Acre

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