Manaus 30º • Nublado
Quinta, 09 Mai 2024

O almoço do Círio e a sacralização da mandioca

c3

É Círio outra vez. Certamente, no próximo dia 10 de outubro, essa afirmação ecoará por muitas vezes no território belenense, afinal, será o segundo domingo de outubro e, como de costume, a capital paraense será tomada pelo "espírito nazareno", imprimindo a Belém uma "atmosfera" diferente daquela que, com regularidade, compõe o cenário da capital. Nesse tempo sagrado, a cidade vivencia experiências que se diferem notadamente das vivificadas no cotidiano dos crentes e, por que não dizer, dos não crentes também.

Como é sabido, nos dias que antecedem o Círio, é comum que alguns devotos pintem suas casas, comprem roupas novas, substituam os móveis velhos por novos, abasteçam a despensa e esperem os parentes e amigos, que, com regularidade vêm de outras cidades do interior do estado e quiçá de fora da região. Concomitantemente a isso, as ruas, praças, prédios (públicos e privados) são tomados por bandeirinhas, banners com a imagem da Santa, arquibancadas, palcos, palanques, aparelhos de sons, etc. Até as mangueiras são enfeitadas e ganham novos contornos. Parece que também são "contagiadas" por essa atmosfera que é potencializada pelas músicas nazarenas, que são entoadas pelos "quatro cantos" da cidade. Nesse contexto, Belém também é afetada por outros movimentos, ou melhor, pelos cheiros que exalam da maniçoba e se espalham praticamente por toda a cidade, conforme tratarei adiante. 

Reprodução: Divulgação

Dito isso, torna-se importante saber que os trajetos percorridos pela mandioca até fazer-se perfume na cidade e depois povoar as mesas dos católicos no almoço do Círio se iniciam, mais ou menos, uns quinze dias antes do segundo domingo de outubro, quando ela atravessa quilômetros de rios e/ou estradas paraenses e é disposta por todas as feiras e supermercados de Belém, principalmente na Feira do Ver-o-Peso e na Feira da 25, lugares, dentre tantos outros,onde ela se apresenta in natura, como maniva (em folha, ou moída) e aliganha status de etnomercadoria (COMAROFF e COMAROFF, 2012), conforme mostrado nas imagens que seguem.  


Mas, onde começa esse movimento da mandioca? Qual sua história, sua trajetória até se fazer maniçoba para o almoço do Círio? Essas indagações foram, em certa medida, respondidas por Denys Rodrigues, que é mandiocultor e proprietário de uma pequena casa do forno (casa de farinho ou retiro) – que produz maniva pré-cozida para o almoço do Círio – localizada na comunidade de Taiassuí, no município de Benevides, região metropolitana de Belém.Segundo Denys, a roça da qual se retira a maniva que dá concretude à maniçoba é plantada seis meses antes do Círio, pois se passar desse tempo a folha amargará, ficando imprópria para a feitura da iguaria.

Fonte: Miguel Picanço

Denys me contou que, depois de colhidas, as folhas são transportadas para a casa do forno é lá são moídas em uma máquina própria para esse fim.

Em seguida, inicia-se o processo de cocção: as folhas moídas são misturadas com água e dispostas em grandes panelas e levadas ao fogo por, aproximadamente, quatro dias. Conforme a folha vai se adensado, vai se acrescentado água nas panelas. Apenas depois desses processos e desse tempo de cocção, é que a maniva estará apta para a comercialização, que ocorre nos diferentes comércios da capital paraense.

Isso posto, torna-se importante frisar que além desses movimentos até aqui descritos, outros processos são operados na vida social da mandioca (APPADURAI, 2008), a saber,nas casas das devotas da Virgem de Nazaré, afinal, é tempo de Círio e, conforme já mencionado, esse tempoopera profundas transformações na dinâmica e na vida da capital paraense,queganha novas atmosferas, novas paisagens,sonoridades, cheiros e cores que vão configurando a Festa da Santa comoum fato social total,(MAUSS, 2013).

Na composição dessa festa, o almoço do Círio ocupa centralidade, funcionando como um prolongamento das homenagens à santa. A esse evento, Eraldo Maués (2008) atribui a qualidade de um banquete sacrifical.

O Almoço é ao mesmo tempo o banquete de confraternização e uma espécie de comunhão entre familiares, amigos e convidados com o sagrado, representado pela figura de Maria de Nazaré, a santa cuja imagem terminou naquela manhã a sua peregrinação ritual pelas ruas da cidade. Nesse Almoço ocorre uma espécie de comunhão [...] do cristianismo católico [...] (MAUÉS, 2016, p, 277).

E, mediando essa comunhão está a maniçoba, entendida aqui como prato sagrado, sem o qual o referido banquete torna-se inimaginável.

Mas como se faz essa iguaria? Existem diferentes maneiras de fazê-la. Por exemplo, dona Maria do Socorro, que é católica e devota da santa e que vive em Ananindeua, região metropolitana de Belém, oferece todos os anos o referido almoço e faz a sua maniçoba da seguinte maneira:

Ela inicia o processo de fervura da maniva (que já estava pré-cozida) sete dias antes do Círio. No primeiro dia, coloca a maniva ao fogo com toucinho branco que antes é refogado ao alho, chicória e folhas de louro. A partir de então, o fogo é aceso debaixo da panela pela manhã e à tarde também. Esse ritual se repete até o sábado que antecede o Círio, quando são agregados ao cozimento os demais ingredientes (toucinho, costela, orelha e pé de porco, charque, vísceras bovinas, bacon, etc.) e permanecerão em fervura até à noite. Antes de se juntarem à panela, esses ingredientes são colocados de molho no início da noite de sexta-feira para expelir parte do sal. Após isso, são refogados a alho e óleo, chicória, folhas de louro, cebola e cheiro verde, conforme pode ser notado no vídeo abaixo. Finalmente, deu-se concretude à maniçoba de dona Socorro.

Fonte: Miguel Picanço

Parecida com a feitura de dona Maria do Socorro é o modo como dona Fátima Rodrigues, que também é católica e moradora de Belém, costuma fazer sua maniçoba. Ela coloca a maniva, juntamente com azeite de oliva, para ferver durante cinco dias, sempre acendendo o fogo pela manhã e o apagando antes de ir dormir, por volta das vinte e duas horas. No quinto dia de fervura, ela assa a costela de porco e o pernil no forno, junta-os com os demais ingredientes, que, depois de refogados ao alho, azeite e os outros condimentos, são misturados com a maniva e ali permanecerão fervendo por mais dois dias.

Por outro lado, a maneira como dona Ana Rizete faz sua maniçoba diferencia-se um pouco das demais. Ela costuma colocar a maniva para ferver por volta do meio dia da sexta feira que antecede ao Círio. Nesta etapa, o bacon acompanha a maniva na panela, que antes precisa ser refogado no azeite e alho e misturado com os outros condimentos. No sábado, o charque e a carne de boi são cozidos na panela de pressão e depois misturados e refogados no alho e azeite juntamente com os demais temperos, os quais devem ferver até às vinte e duas horas do sábado. Apesar de já estar pronta, no domingo pela manhã, dona Ana ferve por algumas horas a iguaria, antes do tão esperado almoço do Círio.

Segundo elas, quanto mais tempo de fervura, mais apurada e escurecida ficará a maniçoba e, consequentemente, mais saborosa também, pois, conforme me contaram o que define o sabor é a cor: quanto mais escura, mais apetitosa fica.

Então, como já mencionado, o almoço do Círio constitui-se em um banquete sagrado (MAUÉS, 2016), cujo ritual de consagração precede o dia do Círio. Começa quando a imagem da santa inicia um processo de peregrinação, visitando as casas dos católicos, permanecendo ali por toda à noite e no dia seguinte o ritual se repete e a imagem segue visitando a maior quantidade possível de casas, até que chegue o segundo domingo de outubro. Segundo Maués, é nesse ritual que as donas de casa, ao se purificarem, purificam também suas experiências no almoço do Círio, cujas comidas, particularmente a maniçoba, parecem que, ao mesmo tempo em que vinculam almas, também são portadoras delas. Afinal, quando se oferece um prato de maniçoba está-se ofertando o melhor do banquete, o melhor de quem oferece, que, ao ser recebido e degustado, alimenta e sustenta o espírito católico, assegurando a renovação não apenas da fé, mas também dos laços e vínculos sociais.

Essa ideia de vínculo de almas atribuído ao almoço do Círio parece ser reforçada pelos discursos de dona Maria do Socorro, dona Fátima e dona Ana, que me asseguraram que repetem essas práticas de cozinhar e oferecer o almoço todos os anos, e assim o fazem pela satisfação de receber os amigos, parentes e vizinhos em suas casas para o almoço do Círio. Segundo elas, todo o trabalho é recompensado pela satisfação de ter a maniçoba para oferecer nesse almoço que para elas é sagrado. Dona Fátima, por exemplo, relatou-me que é com imensa alegria que repete em sua casa todos os anos esse banquete ritual. Ela tem dois filhos que moram fora de Belém, um em Brasília e outro em são Paulo, mas todos os anos eles retornam a Belém para o Círio. Então, segundo ela, ao fazer a maniçoba, não economiza na quantidade, prepara-a com fartura, em grandes proporções, a ponto de ser suficiente não apenas para alimentar todos no almoço do Círio, mas também para que os filhos levem a iguaria para os lugares onde moram, assim como para que ela possa doar para os seus vizinhos que, por alguma razão, não tenham feito esse prato.

Antes de findar, postula-se aqui a ideia de que o almoço do Círio é um lugar que ao mesmo tempo que assegura à mandioca a condição de comida sagrada, também adispõe emum movimento que Kopytoff (2008) chamoude singularização,ou seja, um movimentoque possibilita que certas coisas se desloquem da esfera da mercantilização e assumam valores associados à sua proximidade com as trajetórias dos indivíduos, ou grupos. Nesse sentido, o autor afirmou que "[...] algumas vezes essa singularização inclui coisas que normalmente são mercadorias – com efeito, as mercadorias são singularizadas, exatamente por serem retiradas da sua usual esfera mercantil [...]" (KOPYTOFF, 2008, p. 100). Ou seja, uma determinada coisa se singulariza quando se desloca da esfera da mercantilização e passa a ter uma biografia própria, mesmo que por um curto período, assim como acontece com a mandioca durante o almoço do Círio.

Por fim, penso que os ciclos rituais da mandioca no contexto paraense e sua singularização constituem-se num fenômeno de múltiplas dimensões, que envolvem questões e processos para além de sistemas de trocas primárias de doações, recebimentos, devoluções de bens simbólicos e materiais entre indivíduos, favorecendo outras abordagens, como: do saber constituído na relação entre humanos e não humanos; do consumo de bens como arranjo cultural situacional; da constituição híbrida de redes e coletividades sociotécnicas, e da fruição de linhas vitais e constitutivas do fazer-se das coisas na vida coletiva, possibilitando que os belenenses fortaleçam suas identidades como católicos que pertencem a uma comunidade cabocla e amazônica e que,todos os anos, no mesmo período, reúnem-se para prestar culto à Virgem e comer junto com os amigos, as comadres, os compadres, os vizinhos, os "chegados" e os parentes.


Referências

APPADURAI, Arjun.Introdução: mercadorias e a política de valor. In: A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. (Org). APPADURAI, Arjun.Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 15-88.

COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Etnicidad S.A. Buenos Aires/Madrid: Katz Editores, 2012.

KOPYTOFF, Ygor. A biografia cultural das coisas: mercantilização como processo. In: A vida Social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. (Org).APPADURAI, Arjun. Nitéroi: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 89-120.

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Almoço do Círio: um banquete sacrificial em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 36 (2): p. 220-243, 2016. Disponível em: <www.scielo.br>. Acesso em: 24 mar. 2017.

MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a dádiva". In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, (2013).

Veja mais

Veja mais notícias sobre Cultura alimentar.

Veja também:

 

Comentários: 2

Sônia Elena Pereira Corrêa em Sexta, 01 Outubro 2021 19:33

Excelente matéria amigo????sempre levando nossa culinária chegar ao conhecimento de muitos que desconhecem,ainda mais sobre esse delicioso prato que é a maniçoba ,que passa por TD esse processo até chegar a mesa dos paraenses , principalmente na capital ,na época do círio.tornou- se um dos pratos predileto dos Belenenses.
nota100 para matéria!

Excelente matéria amigo????sempre levando nossa culinária chegar ao conhecimento de muitos que desconhecem,ainda mais sobre esse delicioso prato que é a maniçoba ,que passa por TD esse processo até chegar a mesa dos paraenses , principalmente na capital ,na época do círio.tornou- se um dos pratos predileto dos Belenenses. nota100 para matéria!
Miguel Picanço em Sexta, 01 Outubro 2021 20:42

Muito obrigado, querida Sônia. Feliz por ter gostado.

Muito obrigado, querida Sônia. Feliz por ter gostado.
Visitante
Quinta, 09 Mai 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://portalamazonia.com/