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Quinta, 02 Mai 2024

Dando o sangue pela ciência

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"Dar o sangue pelo trabalho" é uma expressão normalmente exagerada sobre dar tudo de si. Mas em alguns casos ela pode ser entendida de forma literal. Todo biólogo que já foi a campo certamente doou seu sangue, e muito, para a vastidão de criaturas que vive às custas dele. Carapanãs. Piuns. Mutucas. Carrapatos. Mucuins ou micuins. A lista é grande. Se você me perguntar qual é a parte não tão boa do meu trabalho, essa certamente será a minha resposta, e talvez a resposta de muitos colegas de profissão. Esse artigo não é um desestímulo para quem quer trabalhar no campo, pelo contrário! É apenas uma crônica sobre as condições adversas que muitas vezes encontramos no nosso trabalho, mas que são compensadas pela felicidade de estar em contato com a natureza.

Sou natural de Recife, Pernambuco, e meu trabalho é na área de ornitologia, ou seja, sou apaixonado por aves, tendo trabalhado especificamente com corujas no meu doutorado. Já fiz muitos trabalhos em campo onde havia poucos carapanãs (também chamados de mosquitos ou pernilongos em outras regiões do Brasil). Na Amazônia, essa é uma realidade em locais na beira de rios de água preta, por exemplo, que tem pH muito ácido para as larvas de carapanãs. Locais longe de áreas alagadas, e outros corpos d'água grandes, normalmente são menos problemáticos.

Carapanã (mosquito, pernilongo) da espécie Aedes taeniorhynchus e do gênero Psorophora sp., respectivamente. Foto: Sidnei Dantas

 Mas já estive em locais onde era muito difícil se concentrar no trabalho. O meu campo mais marcante quanto aos sugadores de sangue, sem dúvida, foi na primeira vez em que fui ao Acre, na região do Rio Purus. Eu fui preparado para um campo "normal", onde uma calça, repelentes e uma camisa de mangas compridas dariam conta da maioria dos carapanãs. Mas essa não era uma região "normal". Nessa viagem, fui apresentado aos piuns (ou borrachudos), e eram muitos. Demais. Infinitos. Sua picada corta a pele e inflama, e a certa altura eu tinha dezenas de filetes de sangue escorrendo do meu rosto, mãos, pés e o que mais estivesse descoberto. Depois de uns dias, as centenas de feridas das picadas começaram a coçar terrivelmente, todas ao mesmo tempo, e não adiantava passar álcool. Meu corpo parecia estar em chamas, e essa foi a primeira vez em meus 25 anos trabalhando na Amazônia em que fiquei desesperado e arrependido por estar em campo. Mas depois de dois dias, a coceira cessou, as picadas dos pequenos vampiros não inflamavam mais, e pude concluir meu campo em paz.

Piuns da família Simulidae. Foto: Sidnei Dantas

 Saindo dos insetos e indo para os aracnídeos, carrapatos e micuins são outros flagelos do campo. Escondidos em cada folha, cada graveto, estão prontos a pegarem carona em nosso corpo e se satisfazerem com nossas hemácias. Depois de um campo em Manaus, por exemplo, eu tive múltiplas feridas que estouraram e se juntaram em uma ferida bem grande no meu tornozelo. Eu fui ao médico achando que estava com algo grave, mas ele me tranquilizou dizendo que era só picada de carrapato. Falando em algo grave: Ah, as doenças transmitidas por esses sugadores! Peguei leishmaniose, que é transmitida por mosquitos do gênero Phlebotomus, num campo no Mato Grosso, pouco antes de viajar para os EUA para fazer parte do meu doutorado. A ferida, característica da doença, abriu na pele do meu dedo depois de uns três meses em que eu estava lá. Se eu fosse tratar do caso nos EUA, teria que pagar um rio de dinheiro, pois isso estaria fora da cobertura do meu plano de saúde do doutorado. O jeito foi voltar ao Brasil e tratar de graça aqui (viva o SUS)!

Ferida na pele em dedo da mão causada por leishmaniose. Foto: Sidnei Dantas

Não há maneiras fáceis de se lidar com essas feras, aladas ou não. Para os carapanãs, ficar repassando repelente funciona bem para algumas espécies, enquanto para outras, parece que só "tempera" o sangue para os insetos. Às vezes dá para usar de criatividade: em meu último campo, num local com muito carapanã, meus colegas armaram um mosquiteiro de cama pendurado num galho, para que tivéssemos um pouco de paz para identificar as aves. Mas nenhum método é infalível. Dependendo do local, a gente tem que se habituar aos nossos amigos hematófagos (que se alimentam de sangue). E se você olhá-los de perto, eles são fascinantes! Meu hobby é fotografia macro, e eu muitas vezes sirvo de isca para os insetos – carrapatos, não. Detesto carrapatos, a picada deles inflama... – e é muito legal ver os detalhes incríveis desses bichos! Essas fotos eu costumo colocar na plataforma iNaturalist, que é também uma forma de contribuir com a ciência. 

Biólogo Sidnei Dantas em trabalho de campo usando um mosquiteiro para se proteger de carapanãs.

 O campo é para mim o meu local de conforto, por mais desconfortos que possa haver. É onde me sinto bem, e ver a biodiversidade das florestas tropicais ao vivo é uma sensação indescritível. A sensação de bem-estar, de muitas vezes estar em locais remotos, as amizades que faço no meu trabalho, o conhecimento que tenho a honra de gerar, e que ajuda de alguma forma na preservação, isso tudo vale algumas picadas.

*Com a colaboração de:

Sidnei de Melo Dantas é biólogo, e trabalha há mais de 20 anos na Amazônia com pesquisa sobre aves. Fez mestrado em ecologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e doutorado em zoologia no Museu Paraense Emílio Goeldi, e sua tese foi sobre as corujas do gênero Megascops, das quais descreveu duas espécies. Atualmente é bolsista do Instituto Tecnológico VALE, e também trabalha como guia de Birdwatching.

Sobre o autor

Ayan Fleischmann é pesquisador titular do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sendo mestre e doutor em recursos hídricos. Em sua trajetória tem pesquisado as águas e várzeas amazônicas em suas múltiplas dimensões. É o presidente da ONG Rede Conexões Amazônicas e seu representante na coluna Conexões Amazônicas no Portal Amazônia, onde recebe pesquisadores convidados.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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