Antifábula
Era uma vez uma cidade sorriso. Ali, os bairros com suas características próprias de tranquilidade, com seus moradores conversando na porta das casas, encantavam os meninos de Manaus, a desfilar sua beleza pelas ruas que davam geralmente em igarapés. Ah, os igarapés, do Quarenta, do Crespo, do Parque 10, da Ponte da Bolivia, do Tarumã. Pobres e ricos súditos do mesmo rei, o Estado Oficial, embora mínima fosse a presença do poder público. Lentamente, em 30 anos, as ruas incharam. No vácuo do poder, a partir dos anos 80, surgiram os estados paralelos, lobos alimentados pelo tráfico de drogas. Estruturados e profissionais, assimilaram a organização no contato com os presos que foram soltos. Criaram facções, que se detestam, numa guerra econômica que movimenta cerca de R$ 30 milhões mensais, mas têm um inimigo comum, o Estado oficial. Eles prendem e julgam segundo as próprias leis, exercendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E como esses Estados paralelos são administrados? Vale o exercício de imaginação. Tem o Ministério das Comunicações, responsável pelas centrais telefônicas clandestinas e pelos celulares distribuídos nas prisões. Providencia fogos de artifícios, balões e pipas que dão o alerta quando o inimigo tenta chegar. Há o Ministério da Infância e Cultura, importantíssimo, pois organiza os bailes funks, tão a gosto dos locais, que cantam "tá dominado, tá tudo dominado". Existe o Ministério da Economia e Comércio, um dos principais. O produto interno é bruto (crack) ou refinado (cocaína). Lida com os pontos de venda e chega ao requinte mercadológico de fornecer grátis a droga para os curiosos. Depois de viciados, bem, depois é outra coisa. Afinal, a economia é auto-sustentável. Já o Ministério da Agricultura adota a terceirização, sinal do mundo globalizado. A coca vem de plantações na Colômbia. A maconha é paraguaia ou cultivada no Nordeste e no Centro-Oeste brasileiros. O Ministério do Trabalho emprega menores e jovens adultos, garantindo um ganho médio de 500 reais por semana nos escalões mais baixos, equivalentes a dois meses e meio de serviço no Estado oficial. Já o Ministério dos Transportes impulsiona os "bondes", comboios de carros roubados que atacam postos inimigos, tais como prédios da prefeitura, delegacias e fóruns. Cuida também dos barcos que avançam pela orla do Rio Negro conduzindo fuzis AK 47, AR 15 e Fal, além de granadas. O da Justiça, Saúde e Previdência Social administra cemitérios clandestinos e garante tratamento médico e subsistência para os presos e familiares. Faz o trabalho social, determina a "lei do silêncio", o funcionamento do comércio e as penas aplicadas aos delatores e inimigos, desde o banimento até a morte. Enfim, qual é a moral dessa antifábula? Nenhuma. É da natureza da antifábula não possuir qualquer espécie de moral. Ademais, a história não terminou. Talvez, amanhã alguém conte uma outra: "Era uma vez uma cidade nordestina..." Essa é a Manaus de hoje.
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